Revista bilíngue difunde obra de escritores de diversos países

 

 

Lançada em formato digital, a revista Portal Literário quer se constituir numa ponte que, tendo a tradução como material constitutivo, põe em diálogo escritores de várias partes do mundo, e tem como objetivo principal difundir a produção literária de escritores lusófonos e francófonos. Idealizada pelo professor doutor Humberto Luiz Oliveira, pesquisador vinculado ao Departamento de Letras e Artes da Universidade Estadual de Feira de Santana (Uefs), a revista, bilíngue, quer contribuir para a difusão da literatura como ferramenta para o conhecimento de si mesmo, do outro e do mundo.

Neste primeiro número o Portal literário conta com narrativas (contos e novelas) de autores de vários espaços lusófonos  ( Adna Couto, Assis Freitas Filho, Humberto de Oliveira, Júlio César Martins Monteiro, Luciano Penelu e Victor Mascarenhas) e francófonos (Claire Varin, Patrick Imbert e Zakaria Lingane (Quebec) e  Sèverine Arnaud (França) cujos textos versam, diretamente ou indiretamente, sobre a errância, o exílio, a reconfiguração identitária.

Segundo Humberto Oliveira, “a tradução para o português de textos de escritores ainda desconhecidos do público lusófono se reveste de importância indiscutível, assim como a tradução para o francês de textos literários de escritores baianos e nordestinos e daqueles que estão fora dos chamados grandes centros, tem o inegável mérito de dar visibilidade a uma produção que ficaria restrita ainda a um público especializado e local”.

A primeira edição da revista pode ser acessada através do endereço eletrônico http://www.portalrevistaliteraria.com.br.

 

Jorge Amado em letras e cores

 

A Amado 1

Amanhã, 14 de agosto, será lançado o novo livro “Jorge Amado em letras e cores”, de Rita Olivieri-Godet e Juraci Dórea, editado pela UEFS Editora.

O lançamento faz parte da programação do Curso Jorge Amado 2015 – V Colóquio de Literatura Brasileira, promovido pela Academia de Letras da Bahia e pela Fundação Casa de Jorge Amado.

Local: Fundação Casa Jorge Amado – Pelourinho – Horário: 17 horas

 

Domingo com Fernando Sabino

 

Em matéria de automóveis

 

Fernando Sabino

Em matéria de automóveis, seu raciocínio era o seguinte:

— Para que ter automóvel, se eu não sei dirigir?

E se alguém lhe sugeria que aprendesse:

— Para que aprender, se não tenho automóvel?

Um dia, porém, não se sabe como, escapou de seu sofismático raciocínio e apareceu dirigindo um automóvel. Aprendera a dirigir, só Deus sabe como:

— Fazer o carro andar eu faço. Mas não sei como funciona, nem como é lá dentro. Outro dia ameaçou enguiçar e então me perguntaram se não seria o carburador. Só então fiquei sabendo que meu carro dispõe de um carburador.

O que o encanta principalmente é o poder sugestivo de certos nomes: carburador, embreagem, chassi. radiador, cárter, diferencial.

— Fala-se também numa famosa mola de seguimento, que deve ser muito importante. Para mim não há alternativa: se enguiçar, desço e tomo um táxi. Imagine se eu tiver de ficar dentro do carro indagando: será o dínamo? a bateria, os acumuladores? falta de força no chassi? falta de óleo na bateria?

Tive de adverti-lo de que bateria e acumuladores eram uma coisa só, e que no radiador só se coloca água.

  — Eu sei, eu sei: aliás, o meu carro, apesar de novo deve estar com algum defeito no radiador, não gasta água nunca! Todas as vezes que mando botar água o homem diz que não é preciso, já tem. Com o óleo é a mesma coisa. Abrem a tampa do carro e retiram lá de dentro, de um lugar que jamais consegui ver direito onde é. um ferrinho comprido, enxugam o ferrinho, tornam a enfiar e retiram de novo, me mostram a ponta pingando óleo e dizem que não é preciso. Nunca é preciso.

— Você não costuma lubrificar o carro?

— Já lubrifiquei uma vez. Isso é fácil: basta levar o carro no posto e dizer: lubrificação geral, trocar o óleo do cárter. Não me esqueço, por causa daquele detetive dos folhetos do meu tempo, o Nick Cárter.

— Convém não esquecer também a água da bateria. Tem de ser água destilada.

 Isto ele também já sabia. Um dia o carro não quis pegar e alguém lhe disse que devia ser a água da bateria. Foi a um posto e mandou que olhassem se tinha água na bateria. Tinha. Então tirem, pediu. O sujeito ficou a olhá-lo como se ele fosse doido: tirar a água? Então ele disse apenas a palavra mágica, que resolve tudo:

— Verifiquem.

  Verificaram, enquanto ele aguardava, meio ressabiado. O homem do posto se aproximou, misterioso:

— Elemento seco.

 Olharam-se mutuamente, em silêncio, sem que qualquer sombra de compreensão perpassasse entre os dois, esclarecendo os mistérios insondáveis da mecânica dos semoventes. Eis que impenetrável é o desígnio dos motores de explosão e traiçoeira a força dos acumuladores.

— Elemento seco?

 Elemento seco! Secam-se os elementos e esotérico se torna o segredo que faz o poderio dos seres vivos no comando das máquinas inertes. Num repente de inspiração divinatória, com a voz embargada do emoção, ele sugeriu:

— Deve ser o giguelê.

 Giguelê — palavra mágica que ele um dia ouviu alguém pronunciar, denunciando a existência de uma peça pequenina que não sabe para que serve nem onde fica, mas da qual certamente emana a energia que movimenta os automóveis, num fluxo de divina inspiração como o que movimenta a dança religiosa em torno à diminuta imagem de Exu e outros deuses pagãos.

— No mais — arremata ele — tirante o giguelê, em matéria de automóveis estou com as mulheres. Para elas como para mim um carro se compõe apenas de duas coisas: buzina e volante.

Texto extraído do livro “Quadrante 2”, 4ª edição – Editora do Autor – Rio de Janeiro, 1963, págs.108-110.

Broken car in cartoon style for repair or service concept

 

Eterno Damário Dacruz

 

Observação do Tempo

Amanhecemos

com os olhos de amanhã

e o dia é hoje.

Anoitecemos

com os sonhos de ontem

e a noite é hoje.

E de tanta

falta de sintonia,

de tanta busca

e farta agonia,

rabiscamos no calendário

a morte dos dias

                                                 (Damário Dacruz)

 

Domingo com a sabedoria de Rubem Alves

 

“Milho de pipoca que não passa pelo fogo continua a ser milho de pipoca, para sempre”.

A Pipoca

Rubem Alves

A culinária me fascina. De vez em quando eu até me até atrevo a cozinhar. Mas o fato é que sou mais competente com as palavras do que com as panelas.

Por isso tenho mais escrito sobre comidas que cozinhado. Dedico-me a algo que poderia ter o nome de “culinária literária”. Já escrevi sobre as mais variadas entidades do mundo da cozinha: cebolas, ora-pro-nobis, picadinho de carne com tomate feijão e arroz, bacalhoada, suflês, sopas, churrascos.

Cheguei mesmo a dedicar metade de um livro poético-filosófico a uma meditação sobre o filme A Festa de Babette que é uma celebração da comida como ritual de feitiçaria. Sabedor das minhas limitações e competências, nunca escrevi como chef. Escrevi como filósofo, poeta, psicanalista e teólogo — porque a culinária estimula todas essas funções do pensamento.

As comidas, para mim, são entidades oníricas.

Provocam a minha capacidade de sonhar. Nunca imaginei, entretanto, que chegaria um dia em que a pipoca iria me fazer sonhar. Pois foi precisamente isso que aconteceu.

A pipoca, milho mirrado, grãos redondos e duros, me pareceu uma simples molecagem, brincadeira deliciosa, sem dimensões metafísicas ou psicanalíticas. Entretanto, dias atrás, conversando com uma paciente, ela mencionou a pipoca. E algo inesperado na minha mente aconteceu. Minhas ideias começaram a estourar como pipoca. Percebi, então, a relação metafórica entre a pipoca e o ato de pensar. Um bom pensamento nasce como uma pipoca que estoura, de forma inesperada e imprevisível.

A pipoca se revelou a mim, então, como um extraordinário objeto poético. Poético porque, ao pensar nelas, as pipocas, meu pensamento se pôs a dar estouros e pulos como aqueles das pipocas dentro de uma panela. Lembrei-me do sentido religioso da pipoca. A pipoca tem sentido religioso? Pois tem.

Para os cristãos, religiosos são o pão e o vinho, que simbolizam o corpo e o sangue de Cristo, a mistura de vida e alegria (porque vida, só vida, sem alegria, não é vida…). Pão e vinho devem ser bebidos juntos. Vida e alegria devem existir juntas.

Lembrei-me, então, de lição que aprendi com a Mãe Stella, sábia poderosa do Candomblé baiano: que a pipoca é a comida sagrada do Candomblé…

A pipoca é um milho mirrado, subdesenvolvido.

Fosse eu agricultor ignorante, e se no meio dos meus milhos graúdos aparecessem aquelas espigas nanicas, eu ficaria bravo e trataria de me livrar delas. Pois o fato é que, sob o ponto de vista de tamanho, os milhos da pipoca não podem competir com os milhos normais. Não sei como isso aconteceu, mas o fato é que houve alguém que teve a ideia de debulhar as espigas e colocá-las numa panela sobre o fogo, esperando que assim os grãos amolecessem e pudessem ser comidos.

Havendo fracassado a experiência com água, tentou a gordura. O que aconteceu, ninguém jamais poderia ter imaginado.

Repentinamente os grãos começaram a estourar, saltavam da panela com uma enorme barulheira. Mas o extraordinário era o que acontecia com eles: os grãos duros quebra-dentes se transformavam em flores brancas e macias que até as crianças podiam comer. O estouro das pipocas se transformou, então, de uma simples operação culinária, em uma festa, brincadeira, molecagem, para os risos de todos, especialmente as crianças. É muito divertido ver o estouro das pipocas!

E o que é que isso tem a ver com o Candomblé? É que a transformação do milho duro em pipoca macia é símbolo da grande transformação porque devem passar os homens para que eles venham a ser o que devem ser. O milho da pipoca não é o que deve ser. Ele deve ser aquilo que acontece depois do estouro. O milho da pipoca somos nós: duros, quebra-dentes, impróprios para comer, pelo poder do fogo podemos, repentinamente, nos transformar em outra coisa — voltar a ser crianças! Mas a transformação só acontece pelo poder do fogo.

Milho de pipoca que não passa pelo fogo continua a ser milho de pipoca, para sempre.

Assim acontece com a gente. As grandes transformações acontecem quando passamos pelo fogo. Quem não passa pelo fogo fica do mesmo jeito, a vida inteira. São pessoas de uma mesmice e dureza assombrosa. Só que elas não percebem. Acham que o seu jeito de ser é o melhor jeito de ser.

Mas, de repente, vem o fogo. O fogo é quando a vida nos lança numa situação que nunca imaginamos. Dor. Pode ser fogo de fora: perder um amor, perder um filho, ficar doente, perder um emprego, ficar pobre. Pode ser fogo de dentro. Pânico, medo, ansiedade, depressão — sofrimentos cujas causas ignoramos. Há sempre o recurso aos remédios. Apagar o fogo. Sem fogo o sofrimento diminui. E com isso a possibilidade da grande transformação.

Imagino que a pobre pipoca, fechada dentro da panela, lá dentro ficando cada vez mais quente, pense que sua hora chegou: vai morrer. De dentro de sua casca dura, fechada em si mesma, ela não pode imaginar destino diferente. Não pode imaginar a transformação que está sendo preparada. A pipoca não imagina aquilo de que ela é capaz. Aí, sem aviso prévio, pelo poder do fogo, a grande transformação acontece: PUF!! — e ela aparece como outra coisa, completamente diferente, que ela mesma nunca havia sonhado. É a lagarta rastejante e feia que surge do casulo como borboleta voante.

Na simbologia cristã o milagre do milho de pipoca está representado pela morte e ressurreição de Cristo: a ressurreição é o estouro do milho de pipoca. É preciso deixar de ser de um jeito para ser de outro.

“Morre e transforma-te!” — dizia Goethe.

Em Minas, todo mundo sabe o que é piruá. Falando sobre os piruás com os paulistas, descobri que eles ignoram o que seja. Alguns, inclusive, acharam que era gozação minha, que piruá é palavra inexistente. Cheguei a ser forçado a me valer do Aurélio para confirmar o meu conhecimento da língua. Piruá é o milho de pipoca que se recusa a estourar.

Meu amigo William, extraordinário professor pesquisador da Unicamp, especializou-se em milhos, e desvendou cientificamente o assombro do estouro da pipoca. Com certeza ele tem uma explicação científica para os piruás. Mas, no mundo da poesia, as explicações científicas não valem.

Por exemplo: em Minas “piruá” é o nome que se dá às mulheres que não conseguiram casar. Minha prima, passada dos quarenta, lamentava: “Fiquei piruá!” Mas acho que o poder metafórico dos piruás é maior.

Piruás são aquelas pessoas que, por mais que o fogo esquente, se recusam a mudar. Elas acham que não pode existir coisa mais maravilhosa do que o jeito delas serem.

Ignoram o dito de Jesus: “Quem preservar a sua vida perdê-la-á”. A sua presunção e o seu medo são a dura casca do milho que não estoura. O destino delas é triste. Vão ficar duras a vida inteira. Não vão se transformar na flor branca macia. Não vão dar alegria para ninguém. Terminado o estouro alegre da pipoca, no fundo a panela ficam os piruás que não servem para nada. Seu destino é o lixo.

Quanto às pipocas que estouraram, são adultos que voltaram a ser crianças e que sabem que a vida é uma grande brincadeira…

“Nunca imaginei que chegaria um dia em que a pipoca iria me fazer sonhar. Pois foi precisamente isso que aconteceu”.

 

Texto extraído do livro O Amor Que Acende a Lua, lançado em 1999.

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