Baden Powell e a Bahia – Caso de amor?

 Leni David

Fazendo amigos

Vinícius de Moraes poetizou um dia que “a vida é a arte do encontro” e foi graças a um encontro casual numa livraria do quartier latin que conheci Haroldo Basílio, mineiro de nascimento e carioca por adoção. Fiquei sabendo, depois, que ele era músico e que dirigia um grupo musical, o Son Brésil.

Haroldo reside em Paris desde 1976, época em que trabalhou como bailarino e percussionista no “Via Brasil”, um dos maiores cabarés brasileiros que existiu na Europa. Fez várias tournées com o grupo “Brasil Tropical”, e na volta a Paris foi trabalhar como bailarino no Moulin Rouge, ao lado de Lisette Malidor. Haroldo realizou vários espetáculos, no Régine’s e no famoso restaurante Maxim’s, em Londres e Paris ; trabalhou com artistas brasileiros de grande sucesso na época, como Maria d’Aparecida e Nazaré Pereira, também participando de gravações com Henri Salvador e Pierre Vassiliu. Só no início dos anos 80 ele iniciou sua carreira solo, como cantor e trompetista, acompanhado do guitarrista Chiquinho Timóteo, com o qual realizou várias tournées pela Europa.

Basílio tornou-se um amigo e grande colaborador ; ele conhecia inúmeros artistas que trabalhavam na noite parisiense e ofereceu-me a possibilidade de conhecer músicos e cantores brasileiros residentes na capital francesa. Graças à sua ajuda realizei uma série de entrevistas com esses artistas, assisti suas apresentações em diversas casas de espetáculos e pude perceber, também, o importante “trabalho de bastidor”, desenvolvido por esses profissionais para a divulgação da música brasileira no exterior.

Foi através de Haroldo conheci Salomé, “a voz mais bonita de Paris”, segundo ele. Salomé da Bahia, como é conhecida na noite parisiense, dona de uma voz extraordinária, capaz de encantar platéias no famoso cabaré Chez Félix da rue Mouffetard e noBrasil Tropical”. Salomé, como indica o seu nome artístico, é baiana de Salvador, e começou a cantar em programas de auditórios na Rádio Sociedade da Bahia, nos anos 60, usando o seu verdadeiro nome : Merinha Silva. Também conheci Sebastião Perazzo, o Tião da Bahia, que mora em Paris, há cerca de 20 anos. Tião tem quatro discos gravados, sendo que o último, “Raízes de Angola e do Brasil” em parceria com outros artistas, inclusive, Cesária Évora. Tião também musicou a peça “O auto da compadecida, apresentada no Teatro Odeon, em Paris, em 1974 e fez várias tournées pela Europa e Estados Unidos divulgando a música brasileira.

“Sangue Novo”

Uma noite, fui convidada por Tião para assistir a um show no Blue Note, um barzinho aconchegante, dirigido por Janette, onde não falta caipirinha, público e apresentações de bons músicos. A noitada corria animada com Tião cantando um repertório de excelente qualidade e chegou ao seu momento culminante quando ele tocou o berimbau (uma das mais bonitas execuções desse instrumento que tive a oportunidade de ver), arrebatando aplausos entusiasmados do público presente. Após o intervalo explicou que ia “botar sangue novo” no palco e convidou, além do seu filho, os irmãos Philippe e Marcel Baden Powell, que estavam presentes, para dar uma “canja”. Os jovens subiram ao palco, Philippe no órgão eletrônico e Marcel ao violão, e quem assistia ao espetáculo, além da surpresa, sentiu-se privilegiado por testemunhar um momento inesquecível de boa música. Enquanto eles se apresentavam, fiz algumas fotos e após a apresentação fui falar com os dois, que estavam acompanhados de jovens amigos. Philippe, com 18 anos na época, e Marcel, 14 anos não escondiam a timidez e um deles disparou: “não somos artistas ainda… o artista é Baden Powell!” Porém, concordaram em dar-me o endereço residencial para que eu enviasse as fotografias que havia feito.

Philippe e Marcelo

Encontro com Baden Powell

Fiz toda essa preleção pois foi graças à cumplicidade desses amigos que consegui o contato com Baden Powell, que residia em Paris naquele momento. Estávamos em 1996. Telefonei falando das fotos e propondo uma entrevista a Baden; Sílvia, mulher e anjo da guarda do nosso artista, disse-me que não seria possível naquele momento pois Baden viajaria para a Itália no dia seguinte, para uma série de apresentações. Não me fiz de rogada, e esperei pacientemente que uma nova oportunidade se apresentasse. Alguns dias depois, fiz novo contato pois havia assistido uma apresentação de Baden no Hot Brass e tinha certeza de que ele já se encontrava na cidade. Liguei para a residência dos artistas e, para minha surpresa, foi o próprio Baden quem respondeu ao telefone. Falei sobre o meu encontro com Phillippe e Marcel no Blue Note, das fotografias que havia feito e do meu desejo de entregá-las e, se possível, de entrevistá-lo. Muito simpático ele aceitou a minha proposição e marcamos para o dia 30 de abril, no início da tarde.

Não posso negar que encontrar Baden Powell “em carne e osso”, era muito importante para mim, enquanto pesquisadora, mas também como admiradora. É preciso não esquecer que a minha geração foi embalada pelos acordes de “Apelo” e “Samba em prelúdio”. Cheguei às duas horas, em ponto. Sílvia e os meninos esperavam-me ; Baden estava descansando. Refleti que, para começar, talvez fosse melhor conversar com Sílvia e os meninos e estava certa, pois não tive dificuldades em entrosar-me. Falamos sobre vários assuntos, perguntei em que colégios estudavam, falei das fotos, que, infelizmente, na pressa de sair para o encontro tão esperado, havia esquecido em casa, e fiquei sabendo que, por minha culpa, eles haviam sido repreendidos pois Baden não sabia (ficou sabendo através do meu telefonema) que eles haviam tocado no Blue Note e não gostou da novidade! Fiquei mortificada, pedi desculpas, expliquei que não sabia desse detalhe…

Philippe, o mais velho, aluno do curso científico de um liceu parisiense e pretendendo cursar uma escola de engenharia, estuda música desde os sete anos de idade, mas há quatro anos, elegeu o piano como seu instrumento preferido, sob a orientação da professora Sônia Maria Vieira, no Rio de Janeiro. Na sua opinião os brasileiros que vivem na França são muito unidos; “existe uma admiração e um reconhecimento do artista (seu pai), mas não existe tietagem… no Brasil, é um pouco diferente : quando os colegas sabem quem é meu pai, querem ir em casa, querem conhecê-lo, etc. Aqui todos os brasileiros são iguais e nos sentimos brasileiros como os outros; o fato de sermos filhos do artista Baden Powell não interfere em nossas vidas”.

Perguntei se o fato de ter um pai famoso não os inibia quando tocavam em público, apesar de serem excelentes músicos e eles responderam: “fazemos música porque gostamos disso, é hereditário! Nossos bisavós eram músicos, nossos avós, também, tanto do lado materno como do lado paterno”. Já Marcel, que também estuda música desde pequeno e que escolheu o violão, como o pai, cursa o curso ginasial ; apesar de mais tímido que o irmão, não hesita em afirmar: “Fazer música é um dom. Quando a gente toca, apesar da responsabilidade, o que vale mesmo é o prazer… é como fazer uma festa, é puro prazer!

Conversávamos animadamente quando Baden entrou na sala, vestido de branco e sorridente. Eram três horas da tarde. Alguns dias antes eu o havia visto no Hot Brass, sala superlotada, pessoas sentadas pelo chão, de pé, completamente absorvidas pelos acordes mágicos do seu violão. No palco, ele era um monstro: homem e violão formavam um todo. Ali, na intimidade da sua casa, ele parecia um menino grande, e o seu jeito descontraído deixou-me à vontade, como se estivesse em casa de um velho amigo.

Baden Powell (foto www.classicandjazz.net)

Expliquei que não era jornalista e que desenvolvia uma pesquisa sobre música popular brasileira e aproveitei para dizer que tinha gostado muito da “canja” dos meninos no Blue Note, ao que ele retrucou: “por enquanto, eles não estão ainda bem preparados… não estão no ponto, precisam amadurecer!” Acrescentando que “breve eles tocariam juntos, pai e filhos”. Perguntou-me se eu era paulista. Expliquei que era baiana, ao que ele retrucou: “você sabe que eu ganhei um parceiro baiano? É o Ildásio (Ildásio Tavares), ele é muito amigo do Philippe e se correspondem sempre. Ele é um intelectual, um letrista formidável!” E continuou: “eu sempre amei a Bahia. Eu acho que todo músico carioca sempre teve muita ligação com a Bahia. Não se pode falar em música, sem falar de Bahia”. Aproveitei a deixa e investi : – Ruy Castro[1] diz que você compôs Berimbau sem nunca ter ido lá, e a Enciclopédia da Música Brasileira,[2] afirma que você permaneceu seis meses na Bahia, desenvolvendo uma pesquisa consagrada aos cantos de origem afro; quem está com a razão?

– “Eu fui à Bahia várias vezes; a primeira vez em que estive lá, eu tinha uns doze anos de idade e acompanhava um grupo de artistas… Cyl Farney, Eliana (aquela do cinema), Renato Murce… depois acompanhei Silvinha Teles, logo no início da Bossa Nova. Acho que foi em 1960; a Bossa Nova não tinha estourado ainda. Era a época de Dolores Durand, Maísa… foi aí que conheci Carlos Coquejo, meu primeiro amigo baiano. Numa outra viagem, conheci Canjiquinha. Ficamos amigos, ele falou, falou, contou histórias e eu fiquei vidrado naquilo. Canjiquinha me contou a história toda, de Besouro, Cordão de Ouro… Nessa época eu estava em plena atividade com Vinícius… Aí eu disse: Vinícius, tem um negócio de berimbau que é maravilhoso… eu fiz um tema e eu queria que a gente fizesse uma letra para ele… ‘capoeira me mandou, dizer que já chegou…’ e pusemos o nome da música ‘Berimbau’, que é aquele sucesso que todo mundo conhece. No início do tema eu me lembrava do mar da Bahia… aquela penumbra, aquela calma, aquele mar escuro, e eu tinha um acompanhamento que me levava mas para junto do cais… eu procurei imitar o som do berimbau com o meu violão…Mas, ‘Lapinha’, foi Canjiquinha quem me ensinou o refrão, que é um tema do folclore baiano. Ele cantava o refrão… ‘quando eu morrer, me enterre na Lapinha…’ e a segunda parte foi inspirada na história de Cordão de Ouro, Besouro. Eu contei para o Paulo (Paulo César Pinheiro), a história que Canjiquinha me contou e Paulo escreveu a letra : ‘vai, meu lamento, vai, contar toda tristeza de viver… ai, a verdade sempre dói… eu sou um homem só, sem poder brigar…

Baden explicou ainda que naquela época, no Rio de Janeiro, falava-se em capoeira, mas ninguém conhecia o berimbau. Os grandes capoeiristas dos anos 30 – 40, freqüentadores da Lapa, “passavam rasteira” e citou Madame Satã, Miguelzinho Camisa Preta, o Pedregulho, o próprio mestre Bimba, “que deve ter ensinado aos outros… eles jogavam capoeira, mas sem berimbau. Havia até um ditado popular que dizia: ‘você pensa que berimbau é gaita?’ Mas ninguém conhecia o instrumento… nem eu!”

Contou-me também que quando criança, conviveu com a “turma da velha guarda” : Pixinguinha, Donga, João da Baiana e mesmo o seu professor de violão, o Meira, que fora membro dos “Oito Batutas” pois eram amigos do seu pai, Seu Lilo, que por sua vez tocava violino. Fazia questão de salientar que todos esses grandes músicos do passado, tinham suas raízes na Bahia e brincou: “eu não sei bem, nasci no Rio, mas acho que tudo é Brasil e eu acho que tenho uma ligação muito forte com a Bahia… tudo começou ali… a Bahia é uma prova!

Explicou-me que o seu avô paterno, Vicente Tomás de Aquino, era maestro e que havia formado uma banda de música no século passado, no Espírito Santo, onde nascera; essa banda de música era composta de negros analfabetos, mas que haviam estudado música; eles usavam uniforme, mas andavam descalços. Baden explica que fora a sua avó paterna quem lhe contara a história e mostrara fotos do seu avô em “traje à rigor”. Comentei que talvez fosse uma “banda de barbeiros”,[3] muito comum naquela época nas festas populares da cidade. Baden fica pensativo por um instante e acrescenta :

– “É aí que eu acho que por causa do meu avô (eu não sei quem foi meu bisavô), devo ter uma ligação com a Bahia… geograficamente o Espírito Santo está ligado à Bahia. Sou muito sensível às coisas da Bahia… ela me arrepia! Eu, quando vou lá, fico parado… sento numa praça à noite… e parece que estou dentro da história… começo a viver toda a história. Isso para o compositor é uma coisa linda! Não é o que eu vejo, é o que eu sinto, sabe? Os afro-sambas que eu compus, por exemplo, é o lado mais forte da minha obra de compositor, de instrumentista. Aquela coisa afro, o violão com a afinação bem grave, lembra a Bahia. A cidade tem qualquer coisa parada no ar! À noite, você escuta um toque de atabaque, longe… tem sempre uma música no ar, uma coisa misteriosa… aquele mar que bate calmo, aquele cais… aquela rua… e esse troço todo sai na minha música. E quando se diz: ‘você foi à Bahia e fez isso ou aquilo’…” Eu respondo: Não! Eu já sou de lá!”

Saí da casa de Baden, nas nuvens, feliz, leve como uma pluma, com a sensação de ter conquistado um grande prêmio. Dois anos se passaram, não nos vimos mais, porém guardei a gravação da entrevista como uma relíquia; quando ouço as músicas que ele compôs vibro mais do que antes, pois conheço os segredos de algumas, como nasceram, como ganharam força espalhando os seus acordes mágicos pelo mundo à fora. Porém, embora seja um pouco egoísta, não resisti ao desejo de contar aos baianos, que temos um irmão, um baiano pelo coração, que ama tanto a “velha mãe Bahia” quanto os seus filhos natos.

Paris, 21/09/1998 


[1] Ver «CASTRO, Ruy. Chega de Saudade, São Paulo, Companhia das Letras, 1990, p. 306

[2] ; Enciclopédia da música brasileira erudita, folclórica e popular, Art Editora, São Paulo, 1977, p.622-624.

[3] Ver : BRASIL, Hebe Machado. A música na cidade do Salvador – 1549 – 1900 …, Publicação de Prefeitura Municipal de Salvador Comemorativa ao IV centenário da cidade, 1969, p.89. CARVALHO FILHO, José Eduardo Freire de. A devoção do Senhor do Bomfim e sua história, Salvador, Tip. de São Francisco, 1923, p. 138. ALMEIDA, Manuel Antônio de. Memórias de um sargento de milícias, 9a ed., São Paulo, Atica, 1979.

 

Júlio César, um brasileiro: na porta do hospital, sem atendimento

 

 

A foto blog-marcelo-auler

 

Fonte: Blog do Mário Magalhães

18/02/2015 12:51

Marcelo Auler, um dos mestres brasileiros do gênero mais nobre do jornalismo, a reportagem, publicou no Facebook o relato abaixo.

Enquanto muitos jornalistas fingiam não saber que o desfile da Beija-Flor foi pago com dinheiro de uma ditadura sanguinária, o bravo Marcelo Auler contava a vida como ela é.

 

Na porta do hospital Miguel Couto, mas sem atendimento

 

Por Marcelo Auler

Na emergência do Hospital Municipal Miguel Couto, no sábado à noite, em pleno carnaval carioca, havia um entre e sai de pessoas. Na maioria, foliões vítimas de pequenos acidentes durante a folia momesca. Chegavam em grupos, alguns mais falantes que outros, os jovens nitidamente “alegres” por conta do teor alcóolico, promoviam algazarra maior, com um volume de voz mais alto. Mas, mesmo entre os acidentados, predominava o espírito alegre.

O curioso é que no entra e saí ninguém reparava em um senhor, aparentando mais do que os seus 52 anos, que permanecia sentado nos primeiros degraus da escada de acesso ao prédio, na Rua Bartolomeu Mitre, no Leblon, zona sul do Rio. Tratava-se de mais um dos cidadãos invisíveis que circulam entre nós sem que os reparemos.

Eu mesmo, que ali aguardava notícias de uma paciente, embora já o tivesse visto, só me interessei por ele quando, com a voz baixa e de forma educada perguntou-me se poderia encher sua garrafinha de água dentro hospital.

Ao entregar-lhe uma nova garrafa d’água, soube que estava por ali há dois dias, queixando-se de febre e apresentando uma ferida na perna direita da qual, na penumbra da noite, e de longe, me pareceu escorrer pus.

Segundo suas explicações, procurou o hospital, na sexta-feira, em busca de atendimento, mas não mereceu qualquer atenção médica. Na triagem o teriam encaminhado para a UPA de Botafogo, sem se preocuparem se ele teria como transpor os cerca de 6 quilômetros que separam o hospital da Unidade de Pronto Atendimento. Não tinha. Com apenas R$ 5,00 no bolso, confessou o medo de gastar o dinheiro na passagem de ida – R$ 3,40 – e depois não ter como voltar com o trocado que restaria. Por ali permaneceu, dormindo na porta do Pronto Socorro, sem ser incomodado.

Já mais tranquilo com relação à situação da paciente que eu acompanhava, procurei entender o que se passava com Júlio César Saniba Peralva, um mineiro de Belo Horizonte, solteiro, nascido em maio de 1962, que segundo contou, por 26 anos foi motorista de ônibus, até que uma “pneumonia mal tratada” o “encostou” no INSS (Beneficio número 700.985.054-3). Desde dezembro recebe R$ 788,00 mensais.

Diz morar em um quarto na comunidade do Pavão-Pavãozinho, em Copacabana. Um irmão reside em outra casa na mesma comunidade. O resto da família, como definiu, “está espalhada”. A ferida na perna ele creditou a um tombo, no caminho do hospital, em busca de atendimento para a febre que sentia e o deixava sem forças.

No Miguel Couto, porém, não mereceu qualquer atendimento. A explicação do segurança é de que ali não tem atendimento ambulatorial, apenas emergencial. Nem mesmo um analgésico qualquer lhe foi dado para diminuir o desconforto. Pelo jeito, o maior hospital público da Zona Sul não possui também qualquer atendimento de assistência social, a ponto de dispensarem um cidadão com aparente mal-estar sem qualquer preocupação de como ele chegará ao local indicado.

Tampouco médicos, funcionários, seguranças e os próprios pacientes que recorrem ao Pronto Socorro se preocuparam com a figura que passou o dia sentado na escada e, à noite, recolheu-se em um pequeno corredor entre a parede do prédio e um canteiro sem plantas. Usando sua sacola de plástico como travesseiro, dormiu da noite de sexta-feira (dia13 de fevereiro) para sábado e pretendia fazer o mesmo naquela noite seguinte, apesar de ao deixar o hospital ter lhe inteirado a passagem de ônibus até Botafogo.

Pelo jeito, não foi a primeira vez que Júlio César foi dispensado de um atendimento. Nos seus pertences estava um encaminhamento concedido pela CAP 2.1 endereçando-o a um tratamento clínico no Centro Municipal de Saúde João Barros Barreto, Rua Tenreiro Aranha s/n Copacabana. Não tinha data, nem especificava quem o endereçava, além do código CAP 2.1. (Foto em anexo)

Na página da Secretaria Municipal de Saúde (SMS) da Prefeitura do Rio verifica-se que AP 2.1 podem ser duas coisas distintas. Uma é o Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) III Maria do Socorro Santos, na estrada da Gávea 520. Sua área de atuação abrange Rocinha, Vidigal, São Conrado e Gávea (AP 2.1). Trata-se de unidade especializada em saúde mental para tratamento e reinserção social de pessoas com transtorno mental grave e persistente. Ou seja, se Júlio César esteve ali, ele deve ter algum problema mental. Mas ainda assim foi deixado à própria sorte.

Mas há também referência ao Centro Médico de Saúde Pindaro de C. Rodrigues – AP 21, na Avenida Padrel Leonel Franca, na Gávea. Neste Centro Médico, segundo a página da SMS, são feitas consultas individuais e coletivas; visita domiciliar; saúde bucal; vacinação; pré-natal; exames de raios-x; eletrocardiograma; exames laboratoriais: sangue, urina e fezes; ultrassonografia; curativos; planejamento familiar; vigilância em saúde; teste do pezinho; tratamento e acompanhamento de pacientes diabéticos e hipertensos. Em sendo ali que Júlio César foi atendido, não há explicação plausível para enviá-lo a outra unidade de saúde.

O atendimento médico que ele buscava não lhe foi dado, mas durante o tempo em que ficou na porta do Hospital Miguel Couto, Júlio César só tinha merecido a solidariedade de uma única pessoa. Trata-se de um morador de rua, alto e magro, pela sua descrição, que cuida das motos que estacionam no outro lado da Avenida Bartolomeu Mitre. Foi dele que recebeu o único alimento do dia: metade de um prato de macarrão com carne moida, que o guardador de motos dividiu com o desconhecido. Pelo menos entre eles a solidariedade existe e, como se trata de dois moradores da cidade, conclui-se que nem tudo está perdido na chamada Cidade Maravilhosa: ainda restam pessoas a se preocuparem com quem está ao seu lado, embora sejam dois necessitados.

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Mulheres sexagenárias

Mulhers

Regina de Castro Pompeu, terceira colocada no Prêmio Longevidade Bradesco de Jornalismo, Histórias de Vida, com o texto: “De repente, 60”

De forma despretensiosa, inscrevi um texto no concurso Premios Longevidade Bradesco Histórias de Vida.

Estou chegando de São Paulo, onde fui participar da premiação.

Mandaram um motorista me buscar e me trazer e fiquei num super-hotel nos Jardins, acompanhada de meu príncipe consorte rsrsrssr. Entre quase 200 concorrentes, conquistei o 3o lugar, com direito a troféu e diploma.

Mas, sinto como se tivesse recebido o Oscar, pois os primeiros colocados foram  jovens que trabalharam por alguns anos para escrever histórias que mereciam ser contadas.

Meu texto foi o único produzido pela própria protagonista. O tema central era o relacionamento inter-geracional. Quase caí da cadeira quando Nicete Bruno, jurada especial me perguntou: “Você é a Regina? Queria muito conhecê-la. Adorei seu texto!!”

Tive, ainda, o privilégio de ser fotografada ao lado da convidada especial, Shirley MacLaine.

É muita emoção, que gostaria de compartilhar com vocês. Abaixo, o texto premiado. Beijos,

Regina

De repente 60 (ou 2×30)

Ao completar sessenta anos, lembrei do  filme “De repente 30”, em que a adolescente, em seu aniversário, ansiosa por chegar logo à idade adulta, formula um desejo e se vê repentinamente com trinta anos, sem saber o que aconteceu nesse intervalo.

Meu sentimento é semelhante ao dela: perplexidade.

Pergunto a mim mesma: onde foram parar todos esses anos?

Ainda sou aquela menina assustada que entrou pela primeira vez na escola, aquela filha desesperada pela perda precoce da mãe; ainda sou aquela professorinha ingênua que enfrentou sua primeira turma, aquela virgem sonhadora que entrou na igreja, vestida de branco, para um casamento que durou tão pouco! Ainda sou aquela mãe aflita com a primeira febre do filho que hoje tem mais de trinta anos.

Acho que é por isso que engordei, para caber tanta gente, é preciso espaço!

Passei batido pela tal crise dos trinta, pois estava ocupada demais lutando pela sobrevivência.

Os quarenta foram festejados com um baile, enquanto eu ansiava pela aposentadoria na carreira do magistério, que aconteceu quatro anos depois.

Os cinquenta me encontraram construindo uma nova vida, numa nova cidade, num novo posto de trabalho.

Agora, aos sessenta, me pergunto onde está a velhinha que eu esperava ser nesta idade e onde se escondeu a jovem que me olhava do espelho todas as manhãs.

Tive o privilégio de viver uma época de profundas e rápidas transformações em todas as áreas: de Elvis Presley e Sinatra a Michael Jackson, de Beatles e Rolling Stones a Madonna, de Chico e Caetano a Cazuza e Ana Carolina; dos anos de chumbo da ditadura militar às passeatas pelas diretas e impeachment do presidente a um novo país misto de decepções e esperanças; da invenção da pílula e liberação sexual ao bebê de proveta e o pesadelo da AIDS. Testemunhei a conquista dos cinco títulos mundiais do futebol brasileiro (e alguns vexames históricos).

Nasci no ano em que a televisão chegou ao Brasil, mas minha família só conseguiu comprar um aparelho usado dez anos depois e, por meio de suas transmissões, vi a chegada do homem à lua, a queda do muro de Berlim e algumas guerras modernas.

Passei por três reformas ortográficas e tive de aprender a nova linguagem do computador e da internet. Aprendi tanto que foi por meio desta que conheci, aos cinquenta e dois anos, meu companheiro, com quem tenho, desde então, compartilhado as aventuras do viver.

Não me sinto diferente do que era há alguns anos, continuo tendo sonhos, projetos, faço minhas caminhadas matinais com meu cachorro Kaká, pratico ioga, me alimento e durmo bem (apesar das constantes visitas noturnas ao banheiro), gosto de cinema, música, leio muito, viajo para os lugares que um dia sonhei conhecer.

Por dois anos não exerci qualquer atividade profissional, mas voltei a orientar trabalhos acadêmicos e a ministrar algumas disciplinas em turmas de pós-graduação, o que me fez rejuvenescer em contato com os alunos, que têm se beneficiado de minha experiência e com quem tenho aprendido muito mais que ensinado.

Só agora comecei a precisar de óculos para perto (para longe eu uso há muitos anos) e não tinjo os cabelos, pois os brancos são tão poucos que nem se percebe (privilégio que herdei de meu pai, que só começou a ficar grisalho após os setenta anos).

Há marcas do tempo, claro, e não somente rugas e os quilos a mais, mas também cicatrizes, testemunhas de algumas aprendizagens: a do apêndice me traz recordações do aniversário de nove anos passado no hospital; a da cesárea marca minha iniciação como mãe e a mais recente, do câncer de mama (felizmente curado), me lembra diariamente que a vida nos traz surpresas nem sempre agradáveis e que não tenho tempo a perder.

A capacidade de fazer várias coisas ao mesmo tempo diminuiu, lembro de coisas que aconteceram há mais de cinquenta anos e esqueço as panelas no fogo.

Aliás, a memória (ou sua falta) merece um capítulo à parte: constantemente procuro determinada palavra ou quero lembrar o nome de alguém e começa a brincadeira de esconde-esconde. Tento fórmulas mnemônicas, recito o alfabeto mentalmente e nada! De repente, quando a conversa já mudou de rumo ou o interlocutor já se foi, eis que surge o nome ou palavra, como que zombando de mim…

Mas, do que é que eu estava falando mesmo?

Ah, sim, dos meus sessenta.

Claro que existem vantagens: pagar meia-entrada (idosos, crianças e estudantes têm essa prerrogativa, talvez porque não são considerados pessoas inteiras), atendimento prioritário em filas exclusivas, sentar sem culpa nos bancos reservados do metrô e a TPM passou a significar “Tranquilidade Pós-Menopausa”.

Certamente o saldo é positivo, com muitas dúvidas e apenas uma certeza: tenho mais passado que futuro e vivo o presente intensamente, em minha nova condição de mulher muito sex…agenária!

 

“Precisamos redefinir, com urgência, o significado de URGENTE”.

 

 Eliane Brum

Dias atrás, Gabriel Prehn Britto, do blog Gabriel quer viajar, tuitou a seguinte frase: “Precisamos redefinir, com urgência, o significado de URGENTE”. (Caixa alta, na internet, é grito.) “Parece que as pessoas perderam a noção do sentido da palavra”, comentou, quando perguntei por que tinha postado esse protesto/desabafo no Twitter. “Urgente não é mais urgente. Não tem mais significado nenhum.” Ele se referia tanto ao urgente usado para anunciar notícias nada urgentes nos sites e nas redes sociais, quanto ao urgente que invade nosso cotidiano, na forma de demanda tanto da vida pessoal quanto da profissional. Depois disso, Gabriel passou a postar uns “tuítes” provocativos, do tipo: “Urgente! Acordei” ou “Urgente: hoje é sexta-feira”.

A provocação é muito precisa. Se há algo que se perdeu nessa época em que a tecnologia tornou possível a todos alcançarem todos, a qualquer tempo, é o conceito de urgência. Vivemos ao mesmo tempo o privilégio e a maldição de experimentarmos uma transformação radical e muito, muito rápida em nosso ser/estar no mundo, com grande impacto na nossa relação com todos os outros. Como tudo o que é novo, é previsível que nos atrapalhemos. E nos lambuzemos um pouco, ou até bastante. Nessa nova configuração, parece necessário resgatarmos alguns conceitos, para que o nosso tempo não seja devorado por banalidades como se fosse matéria ordinária. E talvez o mais urgente desses conceitos seja mesmo o da urgência.

Estamos vivendo como se tudo fosse urgente. Urgente o suficiente para acessar alguém. E para exigir desse alguém uma resposta imediata. Como se o tempo do “outro” fosse, por direito, também o “meu” tempo. E até como se o corpo do outro fosse o meu corpo, já que posso invadi-lo, simbolicamente, a qualquer momento. Como se os limites entre os corpos tivessem ficado tão fluidos e indefinidos quanto a comunicação ampliada e potencializada pela tecnologia. Esse se apossar do tempo/corpo do outro pode ser compreendido como uma violência. Mas até certo ponto consensual, na medida em que este que é alcançado se abre/oferece para ser invadido. Torna-se, ao se colocar no modo “online”, um corpo/tempo à disposição. Mas exige o mesmo do outro – e retribui a possessão. Olho por olho, dente por dente. Tempo por tempo.

Como muitos, tenho tentado descobrir qual é a minha medida e quais são os meus limites nessa nova configuração. E passo a contar aqui um pouco desse percurso no cotidiano, assim como do trilhado por outras pessoas, para que o questionamento fique mais claro. Descobri logo que, para mim, o celular é insuportável. Não é possível ser alcançada por qualquer um, a qualquer hora, em qualquer lugar. Estou lendo um livro e, de repente, o mundo me invade, em geral com irrelevâncias, quando não com telemarketing. Estou escrevendo e alguém liga para me perguntar algo que poderia ter descoberto sozinho no Google, mas achou mais fácil me ligar, já que bastava apertar uma tecla do próprio celular. Trabalhei como uma camela e, no meu momento de folga, alguém resolve me acessar para falar de trabalho, obedecendo às suas próprias necessidades, sem dar a mínima para as minhas. Não, mas não mesmo. Não há chance de eu estar acessível – e disponível – 24 horas por sete dias, semana após semana.

Me bani do mundo dos celulares, fechei essa janela no meu corpo. Mantenho meu aparelho, mas ele fica desligado, com uma gravação de “não uso celular, por favor, mande um e-mail”. Carrego-o comigo quando saio e quase sempre que viajo. Se precisar chamar um táxi em algum momento ou tiver uma urgência real, ligo o celular e faço uma chamada. Foi o jeito que encontrei de usar a tecnologia sem ser usada por ela.

Minha decisão não foi bem recebida pelas pessoas do mundo do trabalho, em geral, nem mesmo pela maior parte dos amigos e da família. Descobri que, ao não me colocar 24 horas disponível, as pessoas se sentiam pessoalmente rejeitadas. Mas não apenas isso: elas sentiam-se lesadas no seu suposto direito a tomar o meu tempo na hora que bem entendessem, com ou sem necessidade, como se não devesse existir nenhum limite ao seu desejo. Algumas declararam-se ofendidas. Como assim eu não posso falar com você na hora que eu quiser? Como assim o seu tempo não é um pouco meu? E se eu precisar falar com você com urgência? Se for urgência real – e quase nunca é – há outras formas de me alcançar.

Percebi também que, em geral, as pessoas sentem não só uma obrigação de estar disponíveis, mas também um gozo. Talvez mais gozo do que obrigação. É o que explica a cena corriqueira de ver as pessoas atendendo o celular nos lugares mais absurdos (inclusive no banheiro…). Nem vou falar de cinema, que aí deveria ser caso de polícia. Mas em aulas de todos os tipos, em restaurantes e bares, em encontros íntimos ou mesmo profissionais. É o gozo de se considerar imprescindível. Como se o mundo e todos os outros não conseguissem viver sem sua onipresença. Se não atenderem o celular, se não forem encontradas de imediato, se não derem uma resposta imediata, catástrofes poderão acontecer.

O celular ligado funciona como uma autoafirmação de importância. Tipo: o mundo (a empresa/a família/ o namorado/ o filho/ a esposa/ a empregada/ o patrão/os funcionários etc) não sobrevive sem mim. A pessoa se estressa, reclama do assédio, mas não desliga o celular por nada. Desligar o celular e descobrir que o planeta continua girando pode ser um risco maior. Nesse sentido, e sem nenhuma ironia, é comovente.

Por outro lado, é um tanto egoísta, já que a pessoa não se coloca por inteiro onde está, numa aula ou no trabalho ou mesmo em casa – nem se dedica por inteiro àquele com quem escolheu estar, num encontro íntimo ou profissional. Está lá – mas apenas parcialmente. Não há como não ter efeito sobre o momento – e sobre o resultado. A pessoa está parcialmente com alguém ou naquela atividade específica, mas também está parcialmente consigo mesma. Ao manter o celular ligado, você pertence ao mundo, a todo mundo e a qualquer um – mas talvez não a si mesmo.

Me parece descortês alguém estar comigo num restaurante, por exemplo, e interromper a conversa e a comida para atender o celular. Assim como me parece abusivo ser obrigada a aturar os celulares das pessoas ao redor tocando em todas as modalidades e volumes, invadindo o espaço de todos os outros sem nenhuma consideração. Ou ainda estar em um lugar público e ter de ouvir a narração de uma vida privada, uma que não conheço nem quero conhecer. Será que isso é realmente necessário? Será que uma pessoa não pode se ausentar, ficar incomunicável, por algumas horas? Será que temos o direito de invadir o corpo/tempo dos outros direta ou indiretamente? Será que há tantas urgências assim? Como é que trabalhávamos e amávamos antes, então?

Bem, eu não sou imprescindível a todo mundo e tenho certeza de que os dias nascem e morrem sem mim. As emergências reais são poucas, ainda bem, e para estas há forma de me encontrar. Logo, posso ficar sem celular. Mas tive de me esforçar para que as pessoas entendessem que não é uma rejeição ou uma modalidade de misantropia, apenas uma escolha. Para mim, é uma maneira de definir as fronteiras simbólicas do meu corpo, de territorializar o que sou eu e o que é o outro, e de estabelecer limites – o que me parece fundamental em qualquer vida.

Tentei manter um telefone fixo, com o número restrito às pessoas fundamentais no campo dos afetos e também no profissional. Mas o telemarketing não permitiu. É impressionante como as empresas de todo o tipo – e agora até os candidatos numa eleição – acham que têm o direito de nos invadir a qualquer hora. Considero uma violência receber uma ligação ou gravação dessas dentro de casa, à minha revelia. E parece que sempre encontram um jeito de burlar nossas tentativas de barrar esse tipo de assédio. Assim, também botei uma gravação no telefone fixo – e ele virou um telefone só para recados, porque foi o único jeito que encontrei de impedir o abuso do mercado.

Minha principal forma de comunicação é hoje o e-mail, porque sou eu que escolho a hora de acessá-lo. E, ao procurar alguém, seja por motivo profissional ou pessoal, tenho certeza de não estar invadindo seu cotidiano em hora imprópria. É assim que combino encontros e entrevistas ao vivo, que são os que eu prefiro. Ou marco horário para conversas por Skype com quem está em outra cidade ou país. E quando viajo ou preciso desaparecer do mundo, para ficar só comigo mesma, ou me dedicar a um outro por completo, ou à escrita de um livro, basta deixar uma mensagem automática. Tento me disciplinar para acessar o Twitter, que para mim é hoje uma ferramenta fundamental para dar, receber e principalmente compartilhar informações, em horários específicos. E desligo o computador antes de dormir, como gesto simbólico que diz: fechei a porta.

Uma amiga foi assaltada por uma insônia persistente. Ao despertar, na madrugada, tinha a sensação de que o mundo se movia em ritmo veloz enquanto ela dormia. Parecia que estava perdendo algo importante, que ficaria para trás. E parecia até que estava morta para o mundo, “offline”. Às vezes não resistia e saía da cama para caminhar até o escritório, onde ficava o computador, e entrar no Facebook e no Twitter, dar uma circulada nos sites de notícias, manter-se desperta, presente e alinhada ao mundo que não parava, correndo atrás dele. Depois, passou a deixar o notebook ao lado da cama e já acessava a internet dali mesmo, apesar dos protestos do marido.

Quando a insônia já estava comprometendo seriamente os seus dias, ela procurou um psiquiatra em busca de remédio. O médico perguntou bastante sobre seus hábitos, e ela descobriu que o pesadelo que a deixava insone era aquele computador ligado, com o mundo acontecendo dentro dele num ritmo que ela não podia acompanhar nem mesmo se mantendo acordada por 24 horas. Bastou desligar o computador a cada noite para que passasse a despertar menos vezes e menos sobressaltada nas madrugadas. Aos poucos, voltou a dormir bem. O mundo estava onde devia estar – e ela também, na cama. Estava offline, mas viva.

Conheço pessoas que botam fita adesiva sobre a câmera do computador. Foi o meio encontrado para se protegerem da sensação de que estavam sendo espiadas/monitoradas 24 horas por dia por algum tipo de Big Brother – no sentido do 1984, do George Orwell (não no do reality show da TV Globo). A câmera tinha se tornado uma espécie de olho do mundo, que podia abrir as pálpebras mesmo à revelia, como nas histórias fantásticas e nos filmes de terror.

Conto minhas (des)venturas, assim como as de outros, apenas porque acho que não somos os únicos a ter esse tipo de inquietação. É um momento histórico bem estratégico de redefinição de limites, de territórios e também de conceitos. Que tipo de efeito terá sobre as novas gerações a ideia de que não há limites para alcançar, ocupar e consumir o tempo/corpo dos pais e amigos e mesmo de desconhecidos? Assim como não há limites para ter o próprio tempo/corpo alcançado, ocupado e consumido?

Ainda acho que o gozo de ser imprescindível a quase todos os outros – no sentido de não poder se ausentar ou se calar – e também de ser onipotente – no sentido de alcançar, a qualquer hora, o corpo de todos os outros – é maior do que o incômodo. Mas talvez só aparentemente, na medida em que é possível que não estejamos conseguindo avaliar o estrago que esses corpos/tempos violáveis e violados possam estar causando na nossa subjetividade – e mesmo na nossa capacidade criativa e criadora.

A grande perda é que, ao se considerar tudo urgente, nada mais é urgente. Perde-se o sentido do que é prioritário em todas as dimensões do cotidiano. E viver é, de certo modo, um constante interrogar-se sobre o que é importante para cada um. Ou, dito de outro modo, uma constante interrogação sobre para quem e para o quê damos nosso tempo, já que tempo não é dinheiro, mas algo tremendamente mais valioso. Como disse o professor Antonio Candido, “tempo é o tecido das nossas vidas”.

Essa oferta 24 X 7 do nosso corpo simbólico para todos os outros – e às vezes para qualquer um – pode ter um efeito bem devastador sobre a nossa existência. Um que sequer é escutado, dado o tanto de barulho que há. Falamos e ouvimos muito, mas de fato não sabemos se dizemos algo e se escutamos algo. Ou se é apenas ruído para preencher um vazio que não pode ser preenchido dessa maneira.

Será que não é este o nosso mal-estar?

Viver no tempo do outro – de todos e de qualquer um – é uma tragédia contemporânea.

 (Eliane Brum escreve às segundas-feiras.)

Fonte: Revista Epoca

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A história passada a limpo

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Lado a Lado: Matrizes do Brasil contemporâneo

 

Alana de O.Freitas El Fahl[i]

A novela Lado a Lado escrita pelos novos autores, João Ximenes Braga e Claudia Lage,  cumpriu com maestria sua função artística de entretimento e informação simultaneamente. Com enredo desenvolvido no início do século vinte, trouxe à discussão todas as questões pulsantes daquela época e que ainda ecoam com força cem anos depois.

Ancorada em sólida pesquisa histórica, o texto reviveu páginas marcantes de nossa História, percorrendo grandes fatos como a chegada da República, as reformas urbanas de Pereira Passos (o bota-abaixo), a Revolta da vacina e a Revolta da chibata e, sobretudo, mostrando como esses eventos repercutiam no cotidiano da sociedade da época.

Construída através de personagens extremamente simbólicos, trabalhando o binômio expresso no título, buscou sempre trazer à tona esses múltiplos lados que compõem o Brasil. Do lado da Rua do Ouvidor, a Baronesa da Boa Vista, que ironicamente recusava-se a enxergar as transformações pelas quais o país passava e sempre vociferava as máximas identitárias de nossa elite: “Sabe com quem está falando” e “Ponha-se no seu lugar”, Laura feminista-vanguardista lutava para ter vez e voz num mundo patriarcal, Bonifácio Vieira, protótipo dos nossos políticos corruptos que cobram suas vantagens em qualquer regime que vigore. Do lado da favela que começava a se formar, Berenice, ambiciosa a qualquer que fosse o preço, Isabel, lutando por sua felicidade e enfrentando todos os preconceitos, Caniço, o marginal ingênuo e manipulável. Observemos que tais personagens perverte a ideia de maniqueísmo, pois o bem e mal estão no humano e não nas classes sociais.

Sem abandonar os expedientes caros de todo bom folhetim, como os amores românticos, as cartas roubadas, a bastardia, a falsa beata, a solteirona encalhada, a redenção dos humilhados, as traições pérfidas, os segredos de família, os autores conseguiram ir muito além ao retratar um período histórico que é germe do nosso Brasil de hoje, nos fazendo pensar com bastante lucidez em temas como a intolerância religiosa (o casamento ecumênico foi emocionante), o papel decisivo da cultura africana, o sistema de cotas ( a criação da escola no morro foi brilhantemente defendida na novela, inclusive com a chegada dos alunos adultos ex-escravos), o lugar da imprensa na formação da opinião pública, a relevância do futebol,  nossa tendência para a comédia no teatro entre outros aspectos.

Toda a novela é digna de elogios, os cenários, os figurinos, as cenas de rua com todos aquele burburinho de cidade moderna que surgia, a interpretação magistral dos atores (a Baronesa, insuportavelmente boa em seu papel de vilã e Zé Navalha, magnífico em seus conflitos de herói frágil), parece ter saído de uma mistura das páginas de Machado de Assis, Lima Barreto e João do Rio, cronistas por excelência desse Brasil revelado na trama das seis.

E por fim é claro, um clássico final feliz para o regozijo dos telespectadores, os maus punidos e os bons em uma celebração vivificante e solar, pois ao menos na ficção, temos justiça nesse país.

 


[i] Professora Adjunta de Literatura da Universidade Estadual de Feira de Santana, alana_freitas@yahoo.com.br

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