Quanta lameira guajira quanta lameira

Eu nasci durante a ditadura militar no Brasil, não lembro de nada pois foi em 1976, só lembro das historias que minha Mãe me contou.
Eu não sei o que é repressão pois tenho sorte de morar no País das Luzes, onde muitos direitos são respeitados. Temos saúde, temos educação gratuita e a repartição das riquezas é feita na base dos impostos.

Podemos criticar o governo quando pagamos muitos impostos, mas temos também que lembrar que favorece as famílias mais humildes. Eu me sinto bem por contribuir a meu nível fazendo um esforço justo.
Minha filha vai na mesma creche que a neta do açougueiro do meu bairro. Porque seria diferente ?
Na creche se trata sem diferença as crianças que pagam um valor menos importante pelo mesmo serviço. O que pagamos é calculado a partir da renda de cada um. Vamos dizer que quem ganha mais, contribui para os que ganham menos.

Tirando essa – a parte– de repartição da riqueza, e voltando a liberdade, aqui os debates são outros como autorizar ou não o véu para as muçulmanas na escolas, pois a escola é laica.
Se adaptar ou não com os diferentes regimes alimentícios : que as crianças sejam filhos de vegan, vegetarianos, muçulmanos que não comem porco, judeus que não comem porco e não misturam leite com carne…  sem falar das alergias que podem se revelar nos primeiros anos de vida.

A liberdade é o que finalmente ?
O que entendi de liberdade quando era menina era poder cantar a música que se queria, era poder falar mal do governo porque não estávamos de acordo com suas política. Atos que não era possíveis nos meus primeiros anos de vida no Brasil.

Caminhando e Cantando de Carlos Sodré foi censurada durante muitos anos, Geraldo Azevedo também foi vítima com sua « Canção de Despedida ». Caetano Veloso,  exilado escrevia « London, London » e « Debaixo dos Caracóis » com muita saudade de sua terra… Ele se espantou com os policiais de Londres em países eram gentis e indicavam até o caminho.

Muitos outros artistas que não tiveram a oportunidade de conseguir se exprimir com suas prosas e tiveram outros destinos.

Liberdade para minha Mãe na década de 70 no Brasil era poder cantar as músicas que queria num barzinho em Feira de Santana, se me lembro bem, era no Mercado de Arte Popular, onde se comia uma maniçoba deliciosa que ela e seus amigos cantavam o que podia ser cantado.
Sempre havia alguém para espiar, denunciar uma infração que podia ser simplesmente cantar o que não se podia.
Uma música nesta época que vinha direto de Cuba. Música que já foi usada, nos Anos 30, pelo locutor de Radio Joselito Fernández em Cuba,  para passar mensagens mudando umas letras.

Conheço poucos militares de carreira,  o pouco que sei é que podem ser coronéis, sargentos, marinheiros, médicos ou até presidentes. Porém esse Corpo de Estado, nos anos da ditadura militar no Brasil parecia não ter pessoas de Letras, graças a essa ausência de “letrados”, a censura deixava passar algumas músicas. Guantanameira em versão transgressiva era Quanta lameira.

Os poucos desobedientes altamente letrados, cantavam Quanta lameira para criticar o regime, porque a censura não parecia para entender o segundo grau.

A falta de poder de expressão pode ajudar também a desenvolver a criatividade. Mas queremos voltar a esse ponto?
Quando ouço com minha filha os Saltimbancos de Chico Buarque, música que ouvia na mesma idade que ela na radiola de casa, seguindo minha Tia Cida, me dou conta que não envelheceu nem um pouco.
A memória é curta mas tem muitas pessoas que ainda que lembram não é?

… « Era uma vez
(e é ainda)
Certo país
(E é ainda)
Onde os animais
Eram tratados como bestas
(São ainda, são ainda)
Tinha um barão
(Tem ainda)
Espertalhão
(Tem ainda)
Nunca trabalhava
E então achava a vida linda
(E acha ainda, e acha ainda) » …
Chico Buarque

Domingo com Fernando Sabino

 

Em matéria de automóveis

 

Fernando Sabino

Em matéria de automóveis, seu raciocínio era o seguinte:

— Para que ter automóvel, se eu não sei dirigir?

E se alguém lhe sugeria que aprendesse:

— Para que aprender, se não tenho automóvel?

Um dia, porém, não se sabe como, escapou de seu sofismático raciocínio e apareceu dirigindo um automóvel. Aprendera a dirigir, só Deus sabe como:

— Fazer o carro andar eu faço. Mas não sei como funciona, nem como é lá dentro. Outro dia ameaçou enguiçar e então me perguntaram se não seria o carburador. Só então fiquei sabendo que meu carro dispõe de um carburador.

O que o encanta principalmente é o poder sugestivo de certos nomes: carburador, embreagem, chassi. radiador, cárter, diferencial.

— Fala-se também numa famosa mola de seguimento, que deve ser muito importante. Para mim não há alternativa: se enguiçar, desço e tomo um táxi. Imagine se eu tiver de ficar dentro do carro indagando: será o dínamo? a bateria, os acumuladores? falta de força no chassi? falta de óleo na bateria?

Tive de adverti-lo de que bateria e acumuladores eram uma coisa só, e que no radiador só se coloca água.

  — Eu sei, eu sei: aliás, o meu carro, apesar de novo deve estar com algum defeito no radiador, não gasta água nunca! Todas as vezes que mando botar água o homem diz que não é preciso, já tem. Com o óleo é a mesma coisa. Abrem a tampa do carro e retiram lá de dentro, de um lugar que jamais consegui ver direito onde é. um ferrinho comprido, enxugam o ferrinho, tornam a enfiar e retiram de novo, me mostram a ponta pingando óleo e dizem que não é preciso. Nunca é preciso.

— Você não costuma lubrificar o carro?

— Já lubrifiquei uma vez. Isso é fácil: basta levar o carro no posto e dizer: lubrificação geral, trocar o óleo do cárter. Não me esqueço, por causa daquele detetive dos folhetos do meu tempo, o Nick Cárter.

— Convém não esquecer também a água da bateria. Tem de ser água destilada.

 Isto ele também já sabia. Um dia o carro não quis pegar e alguém lhe disse que devia ser a água da bateria. Foi a um posto e mandou que olhassem se tinha água na bateria. Tinha. Então tirem, pediu. O sujeito ficou a olhá-lo como se ele fosse doido: tirar a água? Então ele disse apenas a palavra mágica, que resolve tudo:

— Verifiquem.

  Verificaram, enquanto ele aguardava, meio ressabiado. O homem do posto se aproximou, misterioso:

— Elemento seco.

 Olharam-se mutuamente, em silêncio, sem que qualquer sombra de compreensão perpassasse entre os dois, esclarecendo os mistérios insondáveis da mecânica dos semoventes. Eis que impenetrável é o desígnio dos motores de explosão e traiçoeira a força dos acumuladores.

— Elemento seco?

 Elemento seco! Secam-se os elementos e esotérico se torna o segredo que faz o poderio dos seres vivos no comando das máquinas inertes. Num repente de inspiração divinatória, com a voz embargada do emoção, ele sugeriu:

— Deve ser o giguelê.

 Giguelê — palavra mágica que ele um dia ouviu alguém pronunciar, denunciando a existência de uma peça pequenina que não sabe para que serve nem onde fica, mas da qual certamente emana a energia que movimenta os automóveis, num fluxo de divina inspiração como o que movimenta a dança religiosa em torno à diminuta imagem de Exu e outros deuses pagãos.

— No mais — arremata ele — tirante o giguelê, em matéria de automóveis estou com as mulheres. Para elas como para mim um carro se compõe apenas de duas coisas: buzina e volante.

Texto extraído do livro “Quadrante 2”, 4ª edição – Editora do Autor – Rio de Janeiro, 1963, págs.108-110.

Broken car in cartoon style for repair or service concept

 

Uma crônica de Clarice Lispector

 

Uma Galinha

Clarice Lispector

Era uma galinha de domingo. Ainda viva porque não passava de nove horas da manhã.

Parecia calma. Desde sábado encolhera-se num canto da cozinha. Não olhava para ninguém, ninguém olhava para ela. Mesmo quando a escolheram, apalpando sua intimidade com indiferença, não souberam dizer se era gorda ou magra. Nunca se adivinharia nela um anseio.

Foi pois uma surpresa quando a viram abrir as asas de curto vôo, inchar o peito e, em dois ou três lances, alcançar a murada do terraço. Um instante ainda vacilou — o tempo da cozinheira dar um grito — e em breve estava no terraço do vizinho, de onde, em outro vôo desajeitado, alcançou um telhado. Lá ficou em adorno deslocado, hesitando ora num, ora noutro pé. A família foi chamada com urgência e consternada viu o almoço junto de uma chaminé. O dono da casa, lembrando-se da dupla necessidade de fazer esporadicamente algum esporte e de almoçar, vestiu radiante um calção de banho e resolveu seguir o itinerário da galinha: em pulos cautelosos alcançou o telhado onde esta, hesitante e trêmula, escolhia com urgência outro rumo. A perseguição tornou-se mais intensa. De telhado a telhado foi percorrido mais de um quarteirão da rua. Pouco afeita a uma luta mais selvagem pela vida, a galinha tinha que decidir por si mesma os caminhos a tomar, sem nenhum auxílio de sua raça. O rapaz, porém, era um caçador adormecido. E por mais ínfima que fosse a presa o grito de conquista havia soado.

Sozinha no mundo, sem pai nem mãe, ela corria, arfava, muda, concentrada. Às vezes, na fuga, pairava ofegante num beiral de telhado e enquanto o rapaz galgava outros com dificuldade tinha tempo de se refazer por um momento. E então parecia tão livre.

Estúpida, tímida e livre. Não vitoriosa como seria um galo em fuga. Que é que havia nas suas vísceras que fazia dela um ser? A galinha é um ser. É verdade que não se pode­ria contar com ela para nada. Nem ela própria contava consigo, como o galo crê na sua crista. Sua única vantagem é que havia tantas galinhas que morrendo uma surgiria no mesmo instante outra tão igual como se fora a mesma.

Afinal, numa das vezes em que parou para gozar sua fuga, o rapaz alcançou-a. Entre gritos e penas, ela foi presa. Em seguida carregada em triunfo por uma asa através das telhas e pousada no chão da cozinha com certa violência. Ainda tonta, sacudiu-se um pouco, em cacarejos roucos e indecisos.

Foi então que aconteceu. De pura afobação a galinha pôs um ovo. Surpreendida, exausta. Talvez fosse prematuro. Mas logo depois, nascida que fora para a maternidade, pare­cia uma velha mãe habituada. Sentou-se sobre o ovo e assim ficou, respirando, abotoando e desabotoando os olhos. Seu coração, tão pequeno num prato, solevava e abaixava as penas, enchendo de tepidez aquilo que nunca passaria de um ovo. Só a menina estava perto e assistiu a tudo estarrecida. Mal porém conseguiu desvencilhar-se do acontecimento, despregou-se do chão e saiu aos gritos:

— Mamãe, mamãe, não mate mais a galinha, ela pôs um ovo! ela quer o nosso bem!

Todos correram de novo à cozinha e rodearam mudos a jovem parturiente. Esquentando seu filho, esta não era nem suave nem arisca, nem alegre, nem triste, não era nada, era uma galinha. O que não sugeria nenhum sentimento especial. O pai, a mãe e a filha olhavam já há algum tempo, sem propriamente um pensamento qualquer. Nunca ninguém acariciou uma cabeça de galinha. O pai afinal decidiu-se com certa brusquidão:

— Se você mandar matar esta galinha nunca mais comerei galinha na minha vida!

— Eu também! jurou a menina com ardor. A mãe, cansada, deu de ombros.

Inconsciente da vida que lhe fora entregue, a galinha passou a morar com a família. A menina, de volta do colégio, jogava a pasta longe sem interromper a corrida para a cozinha. O pai de vez em quando ainda se lembrava: “E dizer que a obriguei a correr naquele estado!” A galinha tornara-se a rainha da casa. Todos, menos ela, o sabiam. Continuou entre a cozinha e o terraço dos fundos, usando suas duas capacidades: a de apatia e a do sobressalto.

Mas quando todos estavam quietos na casa e pareciam tê-la esquecido, enchia-se de uma pequena coragem, resquícios da grande fuga — e circulava pelo ladrilho, o corpo avançando atrás da cabeça, pausado como num campo, embora a pequena cabeça a traísse: mexendo-se rápida e vibrátil, com o velho susto de sua espécie já mecanizado.

Uma vez ou outra, sempre mais raramente, lembrava de novo a galinha que se recortara contra o ar à beira do telhado, prestes a anunciar. Nesses momentos enchia os pulmões com o ar impuro da cozinha e, se fosse dado às fêmeas cantar, ela não cantaria mas ficaria muito mais contente. Embora nem nesses instantes a expressão de sua vazia cabeça se alterasse. Na fuga, no descanso, quando deu à luz ou bicando milho — era uma cabeça de galinha, a mesma que fora desenhada no começo dos séculos.

Até que um dia mataram-na, comeram-na e passaram-se anos.

A galinha 1

Texto extraído do livro “Laços de Família”, Editora Rocco — Rio de Janeiro, 1998, pág. 30. Selecionado por Ítalo Moriconi, figura na publicação “Os Cem Melhores Contos Brasileiros do Século”.

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Domingo com a sabedoria de Rubem Alves

 

“Milho de pipoca que não passa pelo fogo continua a ser milho de pipoca, para sempre”.

A Pipoca

Rubem Alves

A culinária me fascina. De vez em quando eu até me até atrevo a cozinhar. Mas o fato é que sou mais competente com as palavras do que com as panelas.

Por isso tenho mais escrito sobre comidas que cozinhado. Dedico-me a algo que poderia ter o nome de “culinária literária”. Já escrevi sobre as mais variadas entidades do mundo da cozinha: cebolas, ora-pro-nobis, picadinho de carne com tomate feijão e arroz, bacalhoada, suflês, sopas, churrascos.

Cheguei mesmo a dedicar metade de um livro poético-filosófico a uma meditação sobre o filme A Festa de Babette que é uma celebração da comida como ritual de feitiçaria. Sabedor das minhas limitações e competências, nunca escrevi como chef. Escrevi como filósofo, poeta, psicanalista e teólogo — porque a culinária estimula todas essas funções do pensamento.

As comidas, para mim, são entidades oníricas.

Provocam a minha capacidade de sonhar. Nunca imaginei, entretanto, que chegaria um dia em que a pipoca iria me fazer sonhar. Pois foi precisamente isso que aconteceu.

A pipoca, milho mirrado, grãos redondos e duros, me pareceu uma simples molecagem, brincadeira deliciosa, sem dimensões metafísicas ou psicanalíticas. Entretanto, dias atrás, conversando com uma paciente, ela mencionou a pipoca. E algo inesperado na minha mente aconteceu. Minhas ideias começaram a estourar como pipoca. Percebi, então, a relação metafórica entre a pipoca e o ato de pensar. Um bom pensamento nasce como uma pipoca que estoura, de forma inesperada e imprevisível.

A pipoca se revelou a mim, então, como um extraordinário objeto poético. Poético porque, ao pensar nelas, as pipocas, meu pensamento se pôs a dar estouros e pulos como aqueles das pipocas dentro de uma panela. Lembrei-me do sentido religioso da pipoca. A pipoca tem sentido religioso? Pois tem.

Para os cristãos, religiosos são o pão e o vinho, que simbolizam o corpo e o sangue de Cristo, a mistura de vida e alegria (porque vida, só vida, sem alegria, não é vida…). Pão e vinho devem ser bebidos juntos. Vida e alegria devem existir juntas.

Lembrei-me, então, de lição que aprendi com a Mãe Stella, sábia poderosa do Candomblé baiano: que a pipoca é a comida sagrada do Candomblé…

A pipoca é um milho mirrado, subdesenvolvido.

Fosse eu agricultor ignorante, e se no meio dos meus milhos graúdos aparecessem aquelas espigas nanicas, eu ficaria bravo e trataria de me livrar delas. Pois o fato é que, sob o ponto de vista de tamanho, os milhos da pipoca não podem competir com os milhos normais. Não sei como isso aconteceu, mas o fato é que houve alguém que teve a ideia de debulhar as espigas e colocá-las numa panela sobre o fogo, esperando que assim os grãos amolecessem e pudessem ser comidos.

Havendo fracassado a experiência com água, tentou a gordura. O que aconteceu, ninguém jamais poderia ter imaginado.

Repentinamente os grãos começaram a estourar, saltavam da panela com uma enorme barulheira. Mas o extraordinário era o que acontecia com eles: os grãos duros quebra-dentes se transformavam em flores brancas e macias que até as crianças podiam comer. O estouro das pipocas se transformou, então, de uma simples operação culinária, em uma festa, brincadeira, molecagem, para os risos de todos, especialmente as crianças. É muito divertido ver o estouro das pipocas!

E o que é que isso tem a ver com o Candomblé? É que a transformação do milho duro em pipoca macia é símbolo da grande transformação porque devem passar os homens para que eles venham a ser o que devem ser. O milho da pipoca não é o que deve ser. Ele deve ser aquilo que acontece depois do estouro. O milho da pipoca somos nós: duros, quebra-dentes, impróprios para comer, pelo poder do fogo podemos, repentinamente, nos transformar em outra coisa — voltar a ser crianças! Mas a transformação só acontece pelo poder do fogo.

Milho de pipoca que não passa pelo fogo continua a ser milho de pipoca, para sempre.

Assim acontece com a gente. As grandes transformações acontecem quando passamos pelo fogo. Quem não passa pelo fogo fica do mesmo jeito, a vida inteira. São pessoas de uma mesmice e dureza assombrosa. Só que elas não percebem. Acham que o seu jeito de ser é o melhor jeito de ser.

Mas, de repente, vem o fogo. O fogo é quando a vida nos lança numa situação que nunca imaginamos. Dor. Pode ser fogo de fora: perder um amor, perder um filho, ficar doente, perder um emprego, ficar pobre. Pode ser fogo de dentro. Pânico, medo, ansiedade, depressão — sofrimentos cujas causas ignoramos. Há sempre o recurso aos remédios. Apagar o fogo. Sem fogo o sofrimento diminui. E com isso a possibilidade da grande transformação.

Imagino que a pobre pipoca, fechada dentro da panela, lá dentro ficando cada vez mais quente, pense que sua hora chegou: vai morrer. De dentro de sua casca dura, fechada em si mesma, ela não pode imaginar destino diferente. Não pode imaginar a transformação que está sendo preparada. A pipoca não imagina aquilo de que ela é capaz. Aí, sem aviso prévio, pelo poder do fogo, a grande transformação acontece: PUF!! — e ela aparece como outra coisa, completamente diferente, que ela mesma nunca havia sonhado. É a lagarta rastejante e feia que surge do casulo como borboleta voante.

Na simbologia cristã o milagre do milho de pipoca está representado pela morte e ressurreição de Cristo: a ressurreição é o estouro do milho de pipoca. É preciso deixar de ser de um jeito para ser de outro.

“Morre e transforma-te!” — dizia Goethe.

Em Minas, todo mundo sabe o que é piruá. Falando sobre os piruás com os paulistas, descobri que eles ignoram o que seja. Alguns, inclusive, acharam que era gozação minha, que piruá é palavra inexistente. Cheguei a ser forçado a me valer do Aurélio para confirmar o meu conhecimento da língua. Piruá é o milho de pipoca que se recusa a estourar.

Meu amigo William, extraordinário professor pesquisador da Unicamp, especializou-se em milhos, e desvendou cientificamente o assombro do estouro da pipoca. Com certeza ele tem uma explicação científica para os piruás. Mas, no mundo da poesia, as explicações científicas não valem.

Por exemplo: em Minas “piruá” é o nome que se dá às mulheres que não conseguiram casar. Minha prima, passada dos quarenta, lamentava: “Fiquei piruá!” Mas acho que o poder metafórico dos piruás é maior.

Piruás são aquelas pessoas que, por mais que o fogo esquente, se recusam a mudar. Elas acham que não pode existir coisa mais maravilhosa do que o jeito delas serem.

Ignoram o dito de Jesus: “Quem preservar a sua vida perdê-la-á”. A sua presunção e o seu medo são a dura casca do milho que não estoura. O destino delas é triste. Vão ficar duras a vida inteira. Não vão se transformar na flor branca macia. Não vão dar alegria para ninguém. Terminado o estouro alegre da pipoca, no fundo a panela ficam os piruás que não servem para nada. Seu destino é o lixo.

Quanto às pipocas que estouraram, são adultos que voltaram a ser crianças e que sabem que a vida é uma grande brincadeira…

“Nunca imaginei que chegaria um dia em que a pipoca iria me fazer sonhar. Pois foi precisamente isso que aconteceu”.

 

Texto extraído do livro O Amor Que Acende a Lua, lançado em 1999.

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Viver é resgatar os sonhos esquecidos no fundo do armário

 

Rebeca Bedone

Vencer dificuldades, ultrapassar preconceitos e seguir em busca de sonhos e ideais nem sempre é uma jornada fácil nessa vida tão competitiva e cheia de inveja e intolerância. E, muitas vezes, temos que primeiramente enfrentar uma luta interior antes de estarmos prontos para a guerra que acontece lá fora. Mas, quando existe paixão de verdade e uma autêntica aspiração de quem sonha, não há limites que possam ser enfrentados.

Quando eu escrevo, tento superar os meus limites. Inicio uma busca incessante das minhas lembranças, de mim mesma, dos meus sonhos guardados e até daqueles que foram esquecidos em caixas bem lá no fundo do armário. É também um encontro com o desconhecido. Um lugar que eu não sabia, mas que sempre esteve ali, à minha espera.

“Eu tenho um pouco de girassol”, dizia Van Gogh, um dos meus pintores preferidos, e ele acreditava que essa flor tinha um significado especial por causa da sua cor amarela, representando a esperança e a amizade. E, ainda, achava que a gratidão era um sentimento relacionado ao jeito como as flores se abriam. Por isso, ele pintou os quadros de girassóis para enfeitar a sua casa amarela, em Arles, enquanto aguardava o seu amigo e pintor Paul Gauguin.

O amarelo expressa otimismo e criatividade e simboliza a prosperidade e a felicidade. Esta cor desperta alegria porque significa luz, energia e calor.

Acredito que Van Gogh pintava para se libertar. Infelizmente, ele teve um final trágico muito jovem devido a sua doença mental que lhe causara tanto sofrimento. Apesar do esplendor de suas obras e da quantidade significativa de quadros que produziu, ele não conseguiu suportar a sua alma atormentada.

Mas, quando eu olho Os Girassóis, sou capaz de me libertar das minhas angústias e dúvidas. Fecho os olhos e corro por um campo de girassóis.

Hipocrisia, doenças, distância, saudade, maldade, mentiras, miséria, morte, corrupção? Escuridão. Sigo correndo por um campo de girassóis. Porque virá dia depois do outro, o tempo passará, as perguntas aumentarão e o que não posso é ficar parada. É, nós não podemos parar. Então, vamos! Vamos, porque nós também temos um pouco de girassol.

Vamos correr por um campo de girassóis. Seremos uma só corrida de braços abertos, leves como um pincel, a receber um beijo do vento e girar na direção dessa luz que nos conduz a uma dança contra todas as guerras e todos os medos.

Porque hoje seremos as flores do Sol. Aquelas que agradecem a beleza da vida e o mistério divino de estarmos todos aqui. Todos juntos em busca do nosso melhor tom de amarelo.

A girassol !cid_image001_png@01CFDF20

Foto: Internet

Fonte: Revista Bula

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