Antônio Brasileiro – Tiques

 Pode o amor com sua falta

envolver-me em amarguras –

pode uma neurose obscura

cutucar-me, na psique, algo

que (e quem sabe?) não descubro –

pode haver doenças, desastres,

desquites, dívidas, desavenças –

pode ser que tudo mude

ou permaneça a mesma sem-graça

cotidiana existência estapafúrdia –

pode chover canivetes

ou estrôncio, que é mais chique –

pode haver quem não tenha tiques,

faça, impávido, bhakti-yoga:

o fato é que não me encanto

nem me espanto nem corro às léguas.

Fico quieto no meu canto.

 E vão à pura merda ids e egos.

                                                 (Antônio Brasileiro – 1995)

Yves Montand – Les feuilles mortes

 

 

Les feuilles mortes

Oh je voudrais tant que tu te souviennes
Des jours heureux où nous étions amis
En ce temps là, la vie était plus belle
Et le soleil plus brûlant qu’aujourd’hui
Les feuilles mortes se ramassent à la pelle
Tu vois je n’ai pas oublié
Les feuilles mortes se ramassent à la pelle
Les souvenirs et les regrets aussi
Et le vent du nord les emporte
Dans la nuit froide de l’oubli
Tu vois, je n’ai pas oublié
La chanson que tu me chantais

C’est une chanson, qui nous ressemble
Toi tu m’aimais, et je t’aimais
Et nous vivions tout les deux ensemble
Toi qui m’aimais, moi qui t’aimais
Mais la vie sépare ceux qui s’aiment
Tout doucement sans faire de bruit
Et la mer efface sur le sable
Le pas des amants désunis

C’est une chanson, qui nous ressemble
Toi tu m’aimais et je t’aimais
Et nous vivions, tous deux ensemble
Toi qui m’aimait, moi qui t’aimais
Mais la vie sépare ceux qui s’aime
Tout doucement sans faire de bruit
Et la mer efface sur le sable
Le pas des amants désunis.

 

Alguém conhece o verbo FOR?

 

Quem explica  é João Ubaldo!

O Verbo For 

                                                                                               João Ubaldo Ribeiro

Vestibular de verdade era no meu tempo. Já estou chegando, ou já cheguei, à altura da vida em que tudo de bom era no meu tempo; meu e dos outros coroas. Acho inadmissível e mesmo chocante (no sentido antigo) um coroa não ser reacionário. Somos uma força histórica de grande valor. Se não agíssemos com o vigor necessário — evidentemente o condizente com a nossa condição provecta —, tudo sairia fora de controle, mais do que já está. O vestibular, é claro, jamais voltará ao que era outrora e talvez até desapareça, mas julgo necessário falar do antigo às novas gerações e lembrá-lo às minhas coevas (ao dicionário outra vez; domingo, dia de exercício).

    O vestibular de Direito a que me submeti, na velha Faculdade de Direito da Bahia, tinha só quatro matérias: português, latim, francês ou inglês e sociologia, sendo que esta não constava dos currículos do curso secundário e a gente tinha que se virar por fora. Nada de cruzinhas, múltipla escolha ou matérias que não interessassem diretamente à carreira. Tudo escrito tão ruybarbosianamente quanto possível, com citações decoradas, preferivelmente. Os textos em latim eram As Catilinárias ou a Eneida, dos quais até hoje sei o comecinho.

    Havia provas escritas e orais. A escrita já dava nervosismo, da oral muitos nunca se recuperaram inteiramente, pela vida afora. Tirava-se o ponto (sorteava-se o assunto) e partia-se para o martírio, insuperável por qualquer esporte radical desta juventude de hoje. A oral de latim era particularmente espetacular, porque se juntava uma multidão, para assistir à performance do saudoso mestre de Direito Romano Evandro Baltazar de Silveira. Franzino, sempre de colete e olhar vulpino (dicionário, dicionário), o mestre não perdoava.

— Traduza aí quousque tandem, Catilina, patientia nostra — dizia ele ao entanguido vestibulando.

— “Catilina, quanta paciência tens?” — retrucava o infeliz.

Era o bastante para o mestre se levantar, pôr as mãos sobre o estômago, olhar para a platéia como quem pede solidariedade e dar uma carreirinha em direção à porta da sala.

— Ai, minha barriga! — exclamava ele. — Deus, oh Deus, que fiz eu para ouvir tamanha asnice? Que pecados cometi, que ofensas Vos dirigi? Salvai essa alma de alimária. Senhor meu Pai!

 Pode-se imaginar o resto do exame. Um amigo meu, que por sinal passou, chegou a enfiar, sem sentir, as unhas nas palmas das mãos, quando o mestre sentiu duas dores de barriga seguidas, na sua prova oral. Comigo, a coisa foi um pouco melhor, eu falava um latinzinho e ele me deu seis, nota do mais alto coturno em seu elenco.

O maior público das provas orais era o que já tinha ouvido falar alguma coisa do candidato e vinha vê-lo “dar um show“. Eu dei show de português e inglês. O de português até que foi moleza, em certo sentido. O professor José Lima, de pé e tomando um cafezinho, me dirigiu as seguintes palavras aladas:

— Dou-lhe dez, se o senhor me disser qual é o sujeito da primeira oração do Hino Nacional!

— As margens plácidas — respondi instantaneamente e o mestre quase deixa cair a xícara.

— Por que não é indeterminado, “ouviram, etc.”?

— Porque o “as” de “as margens plácidas” não é craseado. Quem ouviu foram as margens plácidas. É uma anástrofe, entre as muitas que existem no hino. “Nem teme quem te adora a própria morte”: sujeito: “quem te adora.” Se pusermos na ordem direta…

— Chega! — berrou ele. — Dez! Vá para a glória! A Bahia será sempre a Bahia!

Quis o irônico destino, uns anos mais tarde, que eu fosse professor da Escola de Administração da Universidade Federal da Bahia e me designassem para a banca de português, com prova oral e tudo. Eu tinha fama de professor carrasco, que até hoje considero injustíssima, e ficava muito incomodado com aqueles rapazes e moças pálidos e trêmulos diante de mim. Uma bela vez, chegou um sem o menor sinal de nervosismo, muito elegante, paletó, gravata e abotoaduras vistosas. A prova oral era bestíssima. Mandava-se o candidato ler umas dez linhas em voz alta (sim, porque alguns não sabiam ler) e depois se perguntava o que queria dizer uma palavra trivial ou outra, qual era o plural de outra e assim por diante. Esse mal sabia ler, mas não perdia a pose. Não acertou a responder nada. Então, eu, carrasco fictício, peguei no texto uma frase em que a palavra “for” tanto podia ser do verbo “ser” quanto do verbo “ir”. Pronto, pensei. Se ele distinguir qual é o verbo, considero-o um gênio, dou quatro, ele passa e seja o que Deus quiser.

— Esse “for” aí, que verbo é esse?

Ele considerou a frase longamente, como se eu estivesse pedindo que resolvesse a quadratura do círculo, depois ajeitou as abotoaduras e me encarou sorridente.

— Verbo for.

— Verbo o quê?

— Verbo for.

— Conjugue aí o presente do indicativo desse verbo.

— Eu fonho, tu fões, ele fõe – recitou ele, impávido. — Nós fomos, vós fondes, eles fõem.

    Não, dessa vez ele não passou. Mas, se perseverou, deve ter acabado passando e hoje há de estar num posto qualquer do Ministério da Administração ou na equipe econômica, ou ainda aposentado como marajá, ou as três coisas. Vestibular, no meu tempo, era muito mais divertido do que hoje e, nos dias que correm, devidamente diplomado, ele deve estar fondo para quebrar. Fões tu? Com quase toda a certeza, não. Eu tampouco fonho. Mas ele fõe.

 Esta crônica foi publicada no jornal “O Globo” (e em outros jornais) na edição de domingo, 13 de setembro de 1998 e integra o livro “O Conselheiro Come”, Ed Nova Fronteira – Rio de Janeiro, 2000, pág. 20.

Tocando em Frente – Almir Sater e Renato Teixeira

 

Sábabo ouvi Tocando em frente, cantada por um amigo querido que não via há muitos anos; hoje acordei cantarolando a canção e decidi postar o vídeo  no blog, assim o momento fica registrado, para lembrar quando sentir saudades de coisas boas.

 

 

Tocando em Frente

Composição: Almir Sater e Renato Teixeira

Ando devagar porque já tive pressa
E levo esse sorriso porque já chorei demais
Hoje me sinto mais forte, mais feliz quem sabe
Só levo a certeza de que muito pouco eu sei
Ou nada sei

Conhecer as manhas e as manhãs,
O sabor das massas e das maçãs,
É preciso amor pra poder pulsar,
É preciso paz pra poder sorrir,
É preciso a chuva para florir

Penso que cumprir a vida seja simplesmente
Compreender a marcha e ir tocando em frente
Como um velho boiadeiro levando a boiada
Eu vou tocando dias pela longa estrada eu vou
Estrada eu sou

Conhecer as manhas e as manhãs,
O sabor das massas e das maçãs,
É preciso amor pra poder pulsar,
É preciso paz pra poder sorrir,
É preciso a chuva para florir

Todo mundo ama um dia todo mundo chora,
Um dia a gente chega, no outro vai embora
Cada um de nós compõe a sua história
Cada ser em si carrega o dom de ser capaz
E ser feliz

Conhecer as manhas e as manhãs
O sabor das massas e das maçãs
É preciso amor pra poder pulsar,
É preciso paz pra poder sorrir,
É preciso a chuva para florir

Ando devagar porque já tive pressa
E levo esse sorriso porque já chorei demais
Cada um de nós compõe a sua história,
Cada ser em si carrega o dom de ser capaz
E ser feliz

Conhecer as manhas e as manhãs,

Entrevista com o escritor Antonio Brasileiro

Cláudia Campos, estudante da UEFS, analisando os poemas de Brasileiro, resolveu fazer uma brincadeira; imaginou uma entrevista e, de maneira criativa, respondeu às questões com versos do poeta.

Antônio Brasileiro

1.     Como foi o dia do seu nascimento? 

 O dia em que nasci não teve mistério algum.

O condutor do bonde almoçou à mesma hora,

a novela do rádio continuou em suspense,

a guerra era a mesma merda:guerra é guerra.

Foi um dia como hoje, como ontem, como amanhã

e como daqui a cem anos, com absoluta certeza.

 

2.     Você se considera alguém muito inteligente?

Há coisas que não decifro.

E nem por isso sofro.

Estar no mundo é que é o difícil.

O sol é uma bola imensa.

Eu, pó de mésons.

Em torno a mim nenhuma só tormenta.

 

3.     O que você acha da injustiça social?

Nós somos da mesma cepa,

mas vistos de binóculos somos os mesmos.

Eis uma grande injustiça.

 

4.     Defina a vida e o mundo.

A vida é a contemplação daquela nuvem.
E o mundo uma forma de passar, que inventamos
para não ver que o mundo não é o mundo,
mas uma nuvem.
                               Passando.

 

A vida – diz Manoel, o são – é

tempestável. E que é tempestável,

Manoel? Tempestável? Ah, tempestável !

É a vida, filho. Quem lá sabe !

 

5.     Como você se vê daqui a alguns anos?

No fim dos tempos,

vou estar numa casinha de palha,

uns livros, um lápis,

papel almaço, a alma pura

e uns rabiscos pra ninguém ler,

só  me confessar.

Ao deus dentro de mim, primeiramente.

E a quem não interessar possa.

 

6.     O que dizer de seus poemas?

Meus versos são de pura essência

Dos poemas essenciais

Nada dizem de verídico

Não querem nada explicar.

Se por vezes falam alto

É por puro gozo, júbilo.

 

7.     Se tivesse que definir sua função no mundo, qual seria?

Fico só comigo, como um lobo

Como um lobo fica só consigo:

Esse mundo é uma jaula;

Você , um inimigo.

 

 8.     Todos nós temos esperança em algo, num governo justo, nas melhores condições de vida e você tem esperança em quê?

A esperança, ah a esperança

Luz no porão iluminando ratos.

 

 9.     Quais são seus planos pro futuro?

 Um  dia ainda hei de escrever poemas fundamentais-

Como a pedra fundamental,

Como a lúgubre senhora magra

E as bússolas de pau com agulha de ferro

Boiando no óleo eterno.

 

10.            Para encerrar, cite-me uma frase sua.

  A verdade é uma só: são muitas.

E estamos todos certos. E sem rumo.

 

 Entrevistado: Antonio Brasileiro

Entrevistadora: Cláudia Campos