Caetano parabeniza Chico Buarque

 

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Foto: Facebook de Caetano Veloso

Chico chega aos setenta (e até agosto sou apenas um ano mais velho do que ele, prazer de dois meses a cada ano). O Brasil é capaz de produzir um Chico Buarque: todas as nossas fantasias de autodesqualificação se anulam. Seu talento, seu rigor, sua elegância, sua discrição são tesouro nosso. Amo-o como amo a cor das águas de Fernando de Noronha, o canto do sotaque gaúcho, os cabelos crespos, a língua portuguesa, as movimentações do mundo em busca de saúde social. Amo-o como amo o mundo, o nosso mundo real e único, com a complicada verdade das pessoas. Os arranha-céus de Chicago, os azeites italianos, as formas-cores de Miró, as polifonias pigmeias. Suas canções impõem exigências prosódicas que comandam mesmo o valor dos erros criativos. Quem disse que sofremos de incompetência cósmica estava certo: disparava a inevitabilidade da virada. O samba nos cinejornais de futebol do Canal 100, Antônio Brasileiro, o Bruxo de Juazeiro, Vinicius, Clarice, Oscar, Rosa, Pelé, Tostão, Cabral, tudo o que representou reviravolta para nossa geração foi captado por Chico e transformado em coloquialismo sem esforço. Vimos melhor e com mais calma o quanto já tínhamos Noel, Haroldo Barbosa, Caymmi, Wilson Batista, Ary, Sinhô, Herivelto. A Revolução Cubana, as pontes de Paris, o cosmopolitismo de Berlim, o requinte e a brutalidade de diversas zonas do continente africano, as consequências de Mao. Chico está em tudo. Tudo está na dicção límpida de Chico. Quando o mundo se apaixonar totalmente pelo que ele faz, terá finalmente visto o Brasil. Sem o amor que eu e alguns alardeamos à nossa raiz lusitana, ele faz muito mais por ela (e pelo que a ela se agrega) do que todos nós juntos.”

Caetano Veloso, via Facebook

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Confissão de Manuel Bandeira

 

Hoje encontrei num classificador cheio de papéis, que guardei ao longo dos anos, uma preciosidade; entre eles a crônica de Manuel Bandeira falando da tuberculose da qual foi vítima na sua juventude. Lembro que fiquei muito emocionada quando li a crônica pela primeira vez e como sempre faço com tudo que me toca, guardei preciosamente a folha datilografada. Hoje, ao encontrá-la, decidi publicá-la aqui no blog. Ela precisa viajar por aí para que outras pessoas, principalmente os jovens, conheçam esta história de superação.

 Minha adolescência

A história da minha adolescência é a história da minha doença. Adoecia aos 18 anos quando estava fazendo o curso de engenheiro-arquiteto da Escola Politécnica de São Paulo. A moléstia não me chegou sorrateiramente, como costumava fazer, com emagrecimento, febrinha, febrinha, um pouco de tosse, não; caiu sobre mim de supetão e com toda a violência, como uma machadada de Brucutu. Durante meses fiquei entre a vida e a morte. Tive de abandonar para sempre os estudos. Como consegui com os anos levantar-me desse abismo de padecimentos e tristezas é coisa que me parece a mim e aos que me conheceram então um verdadeiro milagre. Aos 31 anos, ao editar o meu primeiro livro de versos, A cinza das horas, era praticamente um inválido Publicando-o, não tinha de todo a intenção de iniciar uma carreira literária. Aquilo era antes o meu testamento – testamento da minha adolescência. Mas os estímulos que recebi fizeram-me persistir nessa atividade poética, que eu exercia mais como um simples desabafo dos meus desgostos íntimos, da minha forçada ociosidade. Hoje vivo admirado de ver que essa minha obra de poeta menor – de poeta rigorosamente menor – tenha podido suscitar tantas simpatias.

Conto estas coisas porque a minha dura experiência implica uma lição de otimismo e confiança. Ninguém desanime por grande que seja a pedra do caminho. A do meu parecia intransponível. No entanto, saltei-a. Milagre? Pois isso prova que ainda há milagres.

Bandeira, Manuel. O melhor da crônica brasileira (2). Rio de Janeiro, Cia José Olympio Ed., 1981, p. 79.

E como brinde, dois poemas de Bandeira:

 

Pneumotórax

Febre, hemoptise, dispnéia e suores noturnos.

A vida inteira que podia ter sido e que não foi.

Tosse, tosse, tosse.

 

Mandou chamar o médico:

– Diga trinta e três.

– Trinta e três… trinta e três… trinta e três…

– Respire.

 

– O senhor tem uma escavação no pulmão esquerdo e o pulmão direito infiltrado.

– Então, doutor, não é possível tentar o pneumotórax?

– Não. A única coisa a fazer é tocar um tango argentino.

 

Poética

Estou farto do lirismo comedido

Do lirismo bem comportado

Do lirismo funcionário público com livro de ponto expediente

protocolo e manifestações de apreço ao sr. diretor

 

Estou farto do lirismo que pára e vai averiguar no dicionário

o cunho vernáculo de um vocábulo

 

Abaixo os puristas

Todas as palavras sobretudo os barbarismos universais

Todas as construções sobretudo as sintaxes de exceção

Todos os ritmos sobretudo os inumeráveis

 

Estou farto do lirismo namorador

Político

Raquítico

Sifilítico

De todo lirismo que capitula ao que quer que seja fora de si mesmo.

 

De resto não é lirismo

Será contabilidade tabela de co-senos secretário do amante exemplar

com cem modelos de cartas e as diferentes maneiras de

agradar às mulheres, etc.

 

Quero antes o lirismo dos loucos

O lirismo dos bêbados

O lirismo difícil e pungente dos bêbados

O lirismo dos clowns de Shakespeare

 

– Não quero mais saber do lirismo que não é libertação.

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A serenata de Cecília Meireles

 

Serenata

 

Permite que feche os meus olhos

pois é muito longe e tão tarde!

Pensei que era apenas demora

e contando pus-me a esperar-te.

 

Permite-me que agora emudeça:

que me conforme em ser sozinha.

Há uma doce luz no silêncio

e a dor é de origem divina

 

Permite que volte o meu rosto

para um céu maior que este mundo

e aprende a ser dócil no sonho

como as estrelas no seu rumo.

(MEIRELES, Cecília. Obra poética. Rio de Janeiro, Cia. José Aguilar Ed., 1967, p. 139).