Entre o Jacuípe, Paris e o Paraguaçu

 Por Patricia

      Achei que saudade era o que eu tinha sentido quando morei longe de casa. Mas não. Há dois anos, aprendi um novo significado, bem mais doído. O dia 26 de junho é um daqueles em que ela aperta mais forte.

      Foi neste dia que ela nasceu. A filha mais velha de Leonel e Hilda. Nunca gostou muito do seu nome de batismo: Lenilda. Preferia Lene, até que se mudou para o outro lado do Atlântico e adotou Leni. Ficou completa quando incorporou o David, de Denis. Seu companheiro de vida. Ele que foi talvez um dos poucos a compreendê-la tão bem. Daquelas compreensões do outro que se faz dentro do silêncio e olhares de entendimento.

      Nascida no sertão, cresceu entre o Jacuípe de Feira e a Bela Paz, onde o Paraguaçu, na temporada de chuva, sai rasgando a terra e levando tudo com sua força. Levou essa força consigo para desbravar os caminhos da vida. Nem sempre foi fácil. Em Feira, fez sua história e a transformou. Foi exemplo para muita gente ao desbravar novos horizontes.

       Agarrou todas as oportunidades e fez dos devaneios de Paris, das conversas das tardes calorentas com a prima Tony, um projeto de vida. E no frio dos invernos parisienses, que a deixavam melancólica, fez seu cantinho aconchegante de Bahia cheio de calor, onde os amigos que por lá passavam sabiam encontrar seu porto seguro.

       Era dotada de múltiplos talentos. Desenhava flores como ninguém. Transformava folhas brancas de seda em lindas pinturas abstratas, com cores que eram bem suas. Tinha na veia a arte de acalentar o paladar com sabores que só ela sabia extrair dos temperos mais simples e os ouvidos com sua voz de tons graves, única.

       Nunca foi exímia tocadora de violão, mas conseguia dedilhar nas cordas o som que precisava para embalar sua voz e revelar suas versões pessoais para letras de canções consagradas. Sua playlist era previsível e mesmo assim, sempre original. Depois de Cajuína, de Caetano, emendava com Borboleta, de Alceu, da qual cantava apenas a parte mais provocante: “Eu procuro a borboleta, feiticeira e descarada, pelo batom da camisa, pela marca da dentada”. Cantava e se divertia com a reação da sua plateia. E seguia com irreverência tocando Chiquita Bacana e revivendo a picardia dos sambas de roda do Recôncavo. No fundo, gostava de surpreender e estas eram suas maiores transgressões.

       Era pura liberdade. Fazia o que tinha vontade. E depois de uma certa idade deixou de fazer o que queriam dela para só fazer o que ela queria. Era direito seu, dizia, não ter que fazer sala para gente chata, ir a recepções por mera obrigação. Sua casa era seu mundo. Ali, se sentia bem com suas pitangueiras, suas acerolas e a goiabeira que o passarinho semeou no jardim lateral estreito. E tinha seu ipê rosa que, quando florescia, ganhava fotos.

      Talhada nos sertões entre o Paraguaçu e o Jacuípe, foi a sertaneja mais parisiense. Não dispensava um beijú, uma carne do sol. Mas em seu paladar havia lugar também para uma dose de pastis, uma porção de coq au vin e um café com macarron.

      Paris. Perdi a viagem para Paris, em que planejava ir com ela a um café que ficava perto da Sorbonne onde tínhamos ido no passado. Queria apenas reviver o momento de estarmos na calçada, apreciando o andarilhar de gente de todo jeito, de todo o mundo. Achei que faria isso em 2016, mas já era tarde. Seu corpo franzino, já adoentado, não permitia mais desfrutar destes pequenos prazeres. Mas pelo menos nos reencontramos na Paris que ela tanto amava e com a qual eu acertava minhas pequenas contas dos invernos da adolescência.

      Voltou à sua Feira de Santana para uma última Semana Santa. Despediu-se de todos ali, na sua casa onde o vento embala o sono, cercada dos irmãos, sobrinhos e amigos. Estava como queria: rodeada de quem gostava para conversas longas e repletas de detalhes sobre suas descobertas recentes que explicavam porque ela era daquele jeito. E todos ouviam com paciência.

Tableau_de_Leni-2-reduzido      No final da vida, descobriu bem mais do que possamos entender do que acontece entre o céu e a terra. Despediu-se com um sorriso tranquilo de quem precisava descansar porque havia já feito muito. Tão terra e tão mundo. Nossa Chiquita Bacana foi-se deixando seus significados.

       E tudo agora é apenas saudade. Faltou dizer a ela muita coisa, porque as palavras, nem sempre chegam na hora certa. Mas pensando bem, isso é bobagem. Leni David, minha mãe, sabia de tudo e lia da gente muito além da alma. E segue brilhando, mesmo na ausência.

 Patrícia Moreira

Jornalista

 

Parte 5: Aniversário

Por Simone 

 Leni_2014

Mainha se foi no dia 12 de agosto de 2016. Nesse dia o “Nosso Olhar” acompanhou sua última despedida cantada por minha irmã.

Viu, quanta coisa linda,

você e eu sentimos

sob este luar

dentro do silencio

que a noite fazia

pelo nosso amor.

Viu, como os nossos olhos

foram se entregando,

e se integraram

na linguagem pura

que os olhos ditam

pelo coração.

Viu, como mundo inteiro,

ficou pequeno,

e em nossas mãos,

virou veneno.

Que a noite bebeu

pelo nosso amor.

Viu, como basta pouco,

para amar-se muito,

um luar bonito,

uma noite quieta,

e olhar tão puro,

esse nosso olhar.

Tableau_de_Leni-1-reduzido

Feliz aniversário Mainha, com a eterna saudade de sua filha!

 Simone

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Parte 4: A volta ao Brasil

Por Simone

Voltou ao Brasil em 2000, se ouvia as “Meninas do Brasil” de Morais Moreira no frescor de sua sala de estar em Feira de Santana.

“Três meninas do Brasil, três corações democratas

Tem moderna arquitetura ou simpatia mulata

Como um cinco fosse um trio, como um traço, um fino fio

No espaço seresteiro da elétrica cultura

Deus me faça brasileiro, criador e criatura

Um documento da raça pela graça da mistura

Do meu corpo em movimento, as três graças do Brasil

Têm a cor da formosura

Se a beleza não carece de ambição e escravatura

E a alegria permanece e a mocidade me procura

Liberdade é quando eu rio na vontade do assobio

Faço arte com pandeiro, matemática e loucura

Deus me faça brasileiro, criador e criatura

Um documento da raça pela graça da mistura

Do meu corpo em movimento, as três graças do Brasil

Têm a cor da formosura”

Patricia_Lucila_Simone-reduzida

Lucila, Simone e Patricia

Em Julho de 2014, Mainha declarou mais uma vez o seu amor à Denis cantando “Eu não existo sem você ” de Vinicius.

“… Assim como o oceano

Só é belo com luar

Assim como a canção

Só tem razão se se cantar

Assim como uma nuvem

Só acontece se chover

Assim como o poeta

Só é grande se sofrer

Assim como viver

Sem ter amor não é viver

Não há você sem mim

E eu não existo sem você.

Uma das músicas de seu lindo repertório. Em 2018, sua neta Juliette canta:

“Eu sou uma borboleta pequenina e feiticeira

Ando no meio das flores procurando quem me queira

Borboleta pequenina saia fora do rosal

Venha ver quanta alegria que hoje é noite de Natal”

Juliette não teve o tempo de ouvir sua Mamy interpretando “Borboleta feiticeira”.

Juliette_Avril-2017-reduzidaJuliette

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Parte 3: Ida e volta

Por Simone

No dia do meu aniversário de 8 anos, lembro da minha surpresa e felicidade quando descobri na minha cama, um belo conjunto, uma camisa marrom franzida e uma saia trapézio. Meu presente de aniversário. Meu bolo de aniversário foi uma boneca com cabelos de ameixa.

A radiola tocava:

“…Reconhece a queda

e não desanima,

Levanta, sacode a poeira

e ainda volta por cima…”

Paulo Vanzolini

Nos anos 90 a música continuava presente no nosso Lar, estávamos no Brasil.

Se ouvia, Paulo Diniz, Geraldo Azevedo…

“Um chope, pra distrair…”

Com, 14 anos, escolhi minha própria música, pois era adolescente, gritava nas músicas de Rage Against the Machine. Nada muito suave e sensível. Quero me desculpar de ter feito dano muitos ouvidos nesse período.

Dez anos mais tarde, quando passava meus domingos à noite dançando no clube de Salsa nos Champs-Elysées, O Montecristo, minha Mãe me acordava no dia seguinte cantando:

“Dáme música Latina,

 porque me siento muy bien…”

(autor desconhecido)

Seu canto me acordava enquanto abria a janela do meu quarto, já era hora do almoço.

Tableau_de_Leni-3-reduzidoAuvergne

Houveram dias mais tristes quando minha Mãe soluçava ouvindo o Ciúme, ou Cajuína de Caetano Veloso,

“Existirmos,

a que será que se destina? “

 A melodia levava a tristeza pra lá, ou pelo menos tentava.

Juraci-10-reduzidoJuraci Dórea

Entre Villalobos e suas Bachianas Brasileiras, Ravel e seu Bolero, As Quatro estações de Vivaldi, os cantores de MPB iluminavam essa sala de Châtillon, no sul de Paris, onde a saudade Brasileira era palpável apesar da linda vista para Montmartre.

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Parte 2: O Brasil em Paris

Por Simone

Naquela época, para matar a saudade de casa, nos dias de festa, se dançava em

 “O balancê, balancê,

quero dansar com você!

entra na roda, morena pra ver,

ô balancê, balancê…”

Interpretado por Gal Costa.

Para ajudar, minhas irmãs mais velhas, trocavam as garrafas de plástico no supermercado, por algumas moedas, essas mesmas garantiam a baguette do dia. Foi então que um anjo então apareceu, ele se chama Denis.

Apesar de se sentir amada, a saudade de casa sempre estava presente. Ela cantava para liberar sua dor.

“Canta, Canta,

passarinho, canta,

canta miudinho,

na palma da minha mão,

quero ver você voando,

 quero ouvir você cantando,

 quero paz no coração…”

Se ouvia também nos dias de alegria

“C’est si bon,

se promener à Montmartre,

boire un verre de Cognac,

mon amour c’est si bon !

com a sua adaptação original!

Leni_Alma Marceau 81

Lene em Alma-Marceau (1981)

Quando morávamos em Fontenay aux Roses, a Java de Edith Piaf, se espalhava pela sala de estar:

“Entraînés par la foule

qui s’élance

Et qui danse,

Une folle farandole

 Nos deux mains restent soudées…”

Naquela época, houve muito acarajé parisiense, feijoadas internacionais e fantasias de Baiana…

Nos domingos durante os almoços, com a turma dos Brasileiros de Paris, se ouvia samba o que chamo hoje de Música de Domingo, música que esverdeava o céu cinzento de Paris.

Leni_Ana-Rosa_5768-reduzidaAniversário de Simone

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