Um conto de Luís Pimentel

Eastweek em Botafogo

Luís Pimentel

Foi num réveillon que passou. Ela estava deitada ao meu lado no sofá, que ficava na sala da minha casa, mas não sei como havíamos chegado ali. Pela janela do apartamento, na Rua São Clemente, via-se as luzes do Morro Dona Marta e mais algumas ruas de Botafogo. Via-se o brilho e quase ouvia-se o pipocar dos fogos na Lagoa. Imaginava-se o que poderia estar acontecendo nas areias de Copacabana.

O vento invadia a sala pelas frestas da janela e fazia balançar os xaxins pendurados no teto. Às vezes era um cheiro de enxofre e temores. Às vezes o gosto horrível da mistura de cigarro e conhaque. As luzes do Morro Dona Marta não me diziam muita coisa, pois era um tempo em que eu ainda não tinha medos. Primeira vez que deitávamos no sofá, era a primeira vez que deitávamos juntos onde quer que fosse, primeira vez que eu via aquela mulher.

Começou a me contar As bruxas de Eastweek, que assistira recentemente, e estava muito empolgada com a coragem e ousadia das mulheres-bruxas no filme, com o talento e a sensualidade do Jack Nicholson no filme, com a cor, a luz, a fotografia do filme, tudo muito sombras, uivos, ventos muito fortes e nevoeiros. Ela estava com a cabeça encostada em meu ombro e eu não tirava os olhos da janela. Também não tirava o ouvido de sua cabeça, de onde pareciam vir os barulhos de carros lá embaixo, do vento gritando lá fora. Falava e falava sem parar do filme, as maestrias todas do roteiro, do diretor e dos atores, e o meu braço repousava dormente sob o seu ombro. Minha mão encostou inocentemente em seu peito e aí pareceu que o vento soprou mais brando, que o mundo já não ia se acabar.

Então fui até a janela e acompanhei atentamente os movimentos de um avião que circulava o Pão de Açúcar antes de apontar o bico para o Aeroporto Santos Dumont, como se o 31 de dezembro fosse um dia qualquer. Deu vontade de viajar, lugares distantes, essa tal de Eastweek, quem sabe. Freada brusca e alguém gritando “quer morrer, filho da mãe, olha por onde anda”, ela falando, falando, falando. Comecei a alisar o seu peito e minha mão suava muito. Lembrei que precisava aparar as unhas e apertei o bico do seu peito. Que ficava duro, pontudo e enrugado nas pontas dos meus dedos. Seu sexo era o mundo à minha espera. Morcegos e vampiros me convidavam insistentemente a entrar. Eu já não sentia qualquer inveja do cretino do Jack Nicholson.

Sabia que o vento ia voltar com toda a febre, que minhas plantas morreriam de susto, mas era último dia do ano e me agarrei em seus cabelos, que tinham um cheiro bom. Seu peito tinha um cheiro bom, não me importava que ela desse cabo de todo o conhaque, de todo o meu cigarro, depois desaparecesse como desapareceu, sem abrir a porta, enquanto eu adormecia entre o gozo e o delírio e abria os olhos muitas horas depois para o sol terrivelmente carioca no primeiro dia de um novo ano, para a dormência da rua e a poeira das obras do Metrô.

O susto no olhar do porteiro me levou a encarar o espelho da recepção: não havia um pingo de sangue em meu corpo, mas eu ainda buscava nos bolso um endereço que a trouxesse de volta.

Eu sei que Eastweek é um bocado longe daqui.

 

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