Caminhando pela cidade com Cíntia Portugal

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Ontem, dia 04 de abril, aconteceu o lançamento do livro Caminhando pela Cidade, de Cíntia Portugal. O meu desejo era de estar presente e de “caminhar pela cidade” de mãos dadas com a autora, pelas ruas da memória, em Feira de Santana, o que não foi possível em razão de problemas de saúde alheios à minha vontade. A minha participação nesse evento seria modesta, mas repleta de boas recordações e alimentadas pelo reencontro com pessoas queridas que fizeram – e que fazem parte da minha vida.

Como feirense tenho pela minha cidade um amor incondicional, apesar das transformações impostas pelo tempo, pelo dito “progresso” e pelo despreparo e indiferença de tantos que a mutilaram ao longo dos anos. Apesar dos esforços realizados nos últimos anos e dos numerosos trabalhos de pesquisa voltados para o interior do Estado, fonte de informações importantes e originais, muito ainda precisa ser resgatado, pois a maioria das pesquisas focaliza Salvador, a capital da Bahia, sobretudo os episódios relacionados ao litoral, costumes e personagens característicos daquela realidade.

Mas, como hoje é dia de festa e alegria, caminhar pelas ruas de Feira da Santana do passado é uma evocação da memória que faz bem à alma; a cidade,  devidamente resgatada através de fontes documentais, iconográficas e escritas, representaram o seu cotidiano em determinadas épocas.

Cíntia Portugal realizou uma leitura das configurações da cidade, seus códigos, regras e procedimentos, praticados e legitimados em momentos distintos da sua história. Identificou atores sociais enquanto agentes e incentivadores da produção cultural local. Ela foi motivada pelo desejo de identificar acontecimentos da vida feirense, reconhecer, desvendar e fixar fatos e personagens no tempo e no espaço, e, para mim, a importância da obra já aparece estampada na capa: uma foto antiga da Rua Sales Barbosa onde se vê toda a lateral do Mercado Municipal, hoje Mercado de Arte. O mais interessante, porém, é a sobreposição de uma foto colorida onde aparecem pernas bem torneadas e um lindo par de sapatos vermelhos decorados com bolinhas brancas e laçarotes.

Ao adquirir o livro, a primeira impressão transmitida à minha mente pelos meus olhos foi a de uma jovem que flanava despreocupada pelas ruas da cidade. Ao concluir a leitura, constatei que esse passeio prazeroso estava intimamente ligado à História do Cotidiano, defendida por Le Goff, pois era possível perceber que a cidade funcionava como um mosaico, que ela apresentava e representava o mundo e a sociedade e atribuía a cada ator e a cada elemento histórico, um papel preciso no funcionamento dos sistemas e na decodificação da realidade. Ou seja, o olhar jovem e extravagante da autora, representado aqui pelo par de sapatos vermelhos, deu outra dimensão ao resgate da memória urbana.

Sabe-se que os grupos humanos representam o mundo que os rodeia de maneiras distintas: um mundo figurado ou sublimado, um mundo codificado pelos valores, pela importância do trabalho e do lazer; um mundo dotado de sentido, através das crenças; um mundo, finalmente, fruto dos legados do meio, da educação e da instrução. Assim, segundo Rioux, a História Cultural, reivindica o estudo das formas de representação do mundo no interior de um grupo humano, independentemente da sua natureza, nacional ou regional, social ou política.

Quero concluir essa breve reflexão citando versos singelos de Eurico Alves Boaventura:

Minha terra não é moça,

minha terra é menino,

que atira badogue

que mata mocó.

(…)

Minha terra é menino

é um vaqueirinho

vestido de couro…

Na lírica melancólica de Eurico, que canta as aventuras do menino sertanejo, fica explícito o desejo de resguardar o passado da cidade, sua memória, guardiã de algo que efetivamente ocorreu, pois é ela quem assegura a continuidade temporal e os alicerces da história que se escreverá no futuro.

Os recentes estudos atestam a impossibilidade de uma dissociação, até então possível, entre a memória e a história, haja vista que ela permite uma melhor apreensão das relações entre o passado e o presente; assim sendo, segundo Paul Ricoeur, a memória deve ser entendida como uma construção identitária dos grupos sociais subordinados a determinados contextos sociais, e tem como fundamento a preservação da identidade.

Encerro a minha reflexão parabenizando a escritora Cíntia Portugal pelo excelente trabalho que realizou em prol da memória histórico-cultural de Feira de Santana.

Leni David

 

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