Baden Powell e a Bahia – Caso de amor?

 Leni David

Fazendo amigos

Vinícius de Moraes poetizou um dia que “a vida é a arte do encontro” e foi graças a um encontro casual numa livraria do quartier latin que conheci Haroldo Basílio, mineiro de nascimento e carioca por adoção. Fiquei sabendo, depois, que ele era músico e que dirigia um grupo musical, o Son Brésil.

Haroldo reside em Paris desde 1976, época em que trabalhou como bailarino e percussionista no “Via Brasil”, um dos maiores cabarés brasileiros que existiu na Europa. Fez várias tournées com o grupo “Brasil Tropical”, e na volta a Paris foi trabalhar como bailarino no Moulin Rouge, ao lado de Lisette Malidor. Haroldo realizou vários espetáculos, no Régine’s e no famoso restaurante Maxim’s, em Londres e Paris ; trabalhou com artistas brasileiros de grande sucesso na época, como Maria d’Aparecida e Nazaré Pereira, também participando de gravações com Henri Salvador e Pierre Vassiliu. Só no início dos anos 80 ele iniciou sua carreira solo, como cantor e trompetista, acompanhado do guitarrista Chiquinho Timóteo, com o qual realizou várias tournées pela Europa.

Basílio tornou-se um amigo e grande colaborador ; ele conhecia inúmeros artistas que trabalhavam na noite parisiense e ofereceu-me a possibilidade de conhecer músicos e cantores brasileiros residentes na capital francesa. Graças à sua ajuda realizei uma série de entrevistas com esses artistas, assisti suas apresentações em diversas casas de espetáculos e pude perceber, também, o importante “trabalho de bastidor”, desenvolvido por esses profissionais para a divulgação da música brasileira no exterior.

Foi através de Haroldo conheci Salomé, “a voz mais bonita de Paris”, segundo ele. Salomé da Bahia, como é conhecida na noite parisiense, dona de uma voz extraordinária, capaz de encantar platéias no famoso cabaré Chez Félix da rue Mouffetard e noBrasil Tropical”. Salomé, como indica o seu nome artístico, é baiana de Salvador, e começou a cantar em programas de auditórios na Rádio Sociedade da Bahia, nos anos 60, usando o seu verdadeiro nome : Merinha Silva. Também conheci Sebastião Perazzo, o Tião da Bahia, que mora em Paris, há cerca de 20 anos. Tião tem quatro discos gravados, sendo que o último, “Raízes de Angola e do Brasil” em parceria com outros artistas, inclusive, Cesária Évora. Tião também musicou a peça “O auto da compadecida, apresentada no Teatro Odeon, em Paris, em 1974 e fez várias tournées pela Europa e Estados Unidos divulgando a música brasileira.

“Sangue Novo”

Uma noite, fui convidada por Tião para assistir a um show no Blue Note, um barzinho aconchegante, dirigido por Janette, onde não falta caipirinha, público e apresentações de bons músicos. A noitada corria animada com Tião cantando um repertório de excelente qualidade e chegou ao seu momento culminante quando ele tocou o berimbau (uma das mais bonitas execuções desse instrumento que tive a oportunidade de ver), arrebatando aplausos entusiasmados do público presente. Após o intervalo explicou que ia “botar sangue novo” no palco e convidou, além do seu filho, os irmãos Philippe e Marcel Baden Powell, que estavam presentes, para dar uma “canja”. Os jovens subiram ao palco, Philippe no órgão eletrônico e Marcel ao violão, e quem assistia ao espetáculo, além da surpresa, sentiu-se privilegiado por testemunhar um momento inesquecível de boa música. Enquanto eles se apresentavam, fiz algumas fotos e após a apresentação fui falar com os dois, que estavam acompanhados de jovens amigos. Philippe, com 18 anos na época, e Marcel, 14 anos não escondiam a timidez e um deles disparou: “não somos artistas ainda… o artista é Baden Powell!” Porém, concordaram em dar-me o endereço residencial para que eu enviasse as fotografias que havia feito.

Philippe e Marcelo

Encontro com Baden Powell

Fiz toda essa preleção pois foi graças à cumplicidade desses amigos que consegui o contato com Baden Powell, que residia em Paris naquele momento. Estávamos em 1996. Telefonei falando das fotos e propondo uma entrevista a Baden; Sílvia, mulher e anjo da guarda do nosso artista, disse-me que não seria possível naquele momento pois Baden viajaria para a Itália no dia seguinte, para uma série de apresentações. Não me fiz de rogada, e esperei pacientemente que uma nova oportunidade se apresentasse. Alguns dias depois, fiz novo contato pois havia assistido uma apresentação de Baden no Hot Brass e tinha certeza de que ele já se encontrava na cidade. Liguei para a residência dos artistas e, para minha surpresa, foi o próprio Baden quem respondeu ao telefone. Falei sobre o meu encontro com Phillippe e Marcel no Blue Note, das fotografias que havia feito e do meu desejo de entregá-las e, se possível, de entrevistá-lo. Muito simpático ele aceitou a minha proposição e marcamos para o dia 30 de abril, no início da tarde.

Não posso negar que encontrar Baden Powell “em carne e osso”, era muito importante para mim, enquanto pesquisadora, mas também como admiradora. É preciso não esquecer que a minha geração foi embalada pelos acordes de “Apelo” e “Samba em prelúdio”. Cheguei às duas horas, em ponto. Sílvia e os meninos esperavam-me ; Baden estava descansando. Refleti que, para começar, talvez fosse melhor conversar com Sílvia e os meninos e estava certa, pois não tive dificuldades em entrosar-me. Falamos sobre vários assuntos, perguntei em que colégios estudavam, falei das fotos, que, infelizmente, na pressa de sair para o encontro tão esperado, havia esquecido em casa, e fiquei sabendo que, por minha culpa, eles haviam sido repreendidos pois Baden não sabia (ficou sabendo através do meu telefonema) que eles haviam tocado no Blue Note e não gostou da novidade! Fiquei mortificada, pedi desculpas, expliquei que não sabia desse detalhe…

Philippe, o mais velho, aluno do curso científico de um liceu parisiense e pretendendo cursar uma escola de engenharia, estuda música desde os sete anos de idade, mas há quatro anos, elegeu o piano como seu instrumento preferido, sob a orientação da professora Sônia Maria Vieira, no Rio de Janeiro. Na sua opinião os brasileiros que vivem na França são muito unidos; “existe uma admiração e um reconhecimento do artista (seu pai), mas não existe tietagem… no Brasil, é um pouco diferente : quando os colegas sabem quem é meu pai, querem ir em casa, querem conhecê-lo, etc. Aqui todos os brasileiros são iguais e nos sentimos brasileiros como os outros; o fato de sermos filhos do artista Baden Powell não interfere em nossas vidas”.

Perguntei se o fato de ter um pai famoso não os inibia quando tocavam em público, apesar de serem excelentes músicos e eles responderam: “fazemos música porque gostamos disso, é hereditário! Nossos bisavós eram músicos, nossos avós, também, tanto do lado materno como do lado paterno”. Já Marcel, que também estuda música desde pequeno e que escolheu o violão, como o pai, cursa o curso ginasial ; apesar de mais tímido que o irmão, não hesita em afirmar: “Fazer música é um dom. Quando a gente toca, apesar da responsabilidade, o que vale mesmo é o prazer… é como fazer uma festa, é puro prazer!

Conversávamos animadamente quando Baden entrou na sala, vestido de branco e sorridente. Eram três horas da tarde. Alguns dias antes eu o havia visto no Hot Brass, sala superlotada, pessoas sentadas pelo chão, de pé, completamente absorvidas pelos acordes mágicos do seu violão. No palco, ele era um monstro: homem e violão formavam um todo. Ali, na intimidade da sua casa, ele parecia um menino grande, e o seu jeito descontraído deixou-me à vontade, como se estivesse em casa de um velho amigo.

Baden Powell (foto www.classicandjazz.net)

Expliquei que não era jornalista e que desenvolvia uma pesquisa sobre música popular brasileira e aproveitei para dizer que tinha gostado muito da “canja” dos meninos no Blue Note, ao que ele retrucou: “por enquanto, eles não estão ainda bem preparados… não estão no ponto, precisam amadurecer!” Acrescentando que “breve eles tocariam juntos, pai e filhos”. Perguntou-me se eu era paulista. Expliquei que era baiana, ao que ele retrucou: “você sabe que eu ganhei um parceiro baiano? É o Ildásio (Ildásio Tavares), ele é muito amigo do Philippe e se correspondem sempre. Ele é um intelectual, um letrista formidável!” E continuou: “eu sempre amei a Bahia. Eu acho que todo músico carioca sempre teve muita ligação com a Bahia. Não se pode falar em música, sem falar de Bahia”. Aproveitei a deixa e investi : – Ruy Castro[1] diz que você compôs Berimbau sem nunca ter ido lá, e a Enciclopédia da Música Brasileira,[2] afirma que você permaneceu seis meses na Bahia, desenvolvendo uma pesquisa consagrada aos cantos de origem afro; quem está com a razão?

– “Eu fui à Bahia várias vezes; a primeira vez em que estive lá, eu tinha uns doze anos de idade e acompanhava um grupo de artistas… Cyl Farney, Eliana (aquela do cinema), Renato Murce… depois acompanhei Silvinha Teles, logo no início da Bossa Nova. Acho que foi em 1960; a Bossa Nova não tinha estourado ainda. Era a época de Dolores Durand, Maísa… foi aí que conheci Carlos Coquejo, meu primeiro amigo baiano. Numa outra viagem, conheci Canjiquinha. Ficamos amigos, ele falou, falou, contou histórias e eu fiquei vidrado naquilo. Canjiquinha me contou a história toda, de Besouro, Cordão de Ouro… Nessa época eu estava em plena atividade com Vinícius… Aí eu disse: Vinícius, tem um negócio de berimbau que é maravilhoso… eu fiz um tema e eu queria que a gente fizesse uma letra para ele… ‘capoeira me mandou, dizer que já chegou…’ e pusemos o nome da música ‘Berimbau’, que é aquele sucesso que todo mundo conhece. No início do tema eu me lembrava do mar da Bahia… aquela penumbra, aquela calma, aquele mar escuro, e eu tinha um acompanhamento que me levava mas para junto do cais… eu procurei imitar o som do berimbau com o meu violão…Mas, ‘Lapinha’, foi Canjiquinha quem me ensinou o refrão, que é um tema do folclore baiano. Ele cantava o refrão… ‘quando eu morrer, me enterre na Lapinha…’ e a segunda parte foi inspirada na história de Cordão de Ouro, Besouro. Eu contei para o Paulo (Paulo César Pinheiro), a história que Canjiquinha me contou e Paulo escreveu a letra : ‘vai, meu lamento, vai, contar toda tristeza de viver… ai, a verdade sempre dói… eu sou um homem só, sem poder brigar…

Baden explicou ainda que naquela época, no Rio de Janeiro, falava-se em capoeira, mas ninguém conhecia o berimbau. Os grandes capoeiristas dos anos 30 – 40, freqüentadores da Lapa, “passavam rasteira” e citou Madame Satã, Miguelzinho Camisa Preta, o Pedregulho, o próprio mestre Bimba, “que deve ter ensinado aos outros… eles jogavam capoeira, mas sem berimbau. Havia até um ditado popular que dizia: ‘você pensa que berimbau é gaita?’ Mas ninguém conhecia o instrumento… nem eu!”

Contou-me também que quando criança, conviveu com a “turma da velha guarda” : Pixinguinha, Donga, João da Baiana e mesmo o seu professor de violão, o Meira, que fora membro dos “Oito Batutas” pois eram amigos do seu pai, Seu Lilo, que por sua vez tocava violino. Fazia questão de salientar que todos esses grandes músicos do passado, tinham suas raízes na Bahia e brincou: “eu não sei bem, nasci no Rio, mas acho que tudo é Brasil e eu acho que tenho uma ligação muito forte com a Bahia… tudo começou ali… a Bahia é uma prova!

Explicou-me que o seu avô paterno, Vicente Tomás de Aquino, era maestro e que havia formado uma banda de música no século passado, no Espírito Santo, onde nascera; essa banda de música era composta de negros analfabetos, mas que haviam estudado música; eles usavam uniforme, mas andavam descalços. Baden explica que fora a sua avó paterna quem lhe contara a história e mostrara fotos do seu avô em “traje à rigor”. Comentei que talvez fosse uma “banda de barbeiros”,[3] muito comum naquela época nas festas populares da cidade. Baden fica pensativo por um instante e acrescenta :

– “É aí que eu acho que por causa do meu avô (eu não sei quem foi meu bisavô), devo ter uma ligação com a Bahia… geograficamente o Espírito Santo está ligado à Bahia. Sou muito sensível às coisas da Bahia… ela me arrepia! Eu, quando vou lá, fico parado… sento numa praça à noite… e parece que estou dentro da história… começo a viver toda a história. Isso para o compositor é uma coisa linda! Não é o que eu vejo, é o que eu sinto, sabe? Os afro-sambas que eu compus, por exemplo, é o lado mais forte da minha obra de compositor, de instrumentista. Aquela coisa afro, o violão com a afinação bem grave, lembra a Bahia. A cidade tem qualquer coisa parada no ar! À noite, você escuta um toque de atabaque, longe… tem sempre uma música no ar, uma coisa misteriosa… aquele mar que bate calmo, aquele cais… aquela rua… e esse troço todo sai na minha música. E quando se diz: ‘você foi à Bahia e fez isso ou aquilo’…” Eu respondo: Não! Eu já sou de lá!”

Saí da casa de Baden, nas nuvens, feliz, leve como uma pluma, com a sensação de ter conquistado um grande prêmio. Dois anos se passaram, não nos vimos mais, porém guardei a gravação da entrevista como uma relíquia; quando ouço as músicas que ele compôs vibro mais do que antes, pois conheço os segredos de algumas, como nasceram, como ganharam força espalhando os seus acordes mágicos pelo mundo à fora. Porém, embora seja um pouco egoísta, não resisti ao desejo de contar aos baianos, que temos um irmão, um baiano pelo coração, que ama tanto a “velha mãe Bahia” quanto os seus filhos natos.

Paris, 21/09/1998 


[1] Ver «CASTRO, Ruy. Chega de Saudade, São Paulo, Companhia das Letras, 1990, p. 306

[2] ; Enciclopédia da música brasileira erudita, folclórica e popular, Art Editora, São Paulo, 1977, p.622-624.

[3] Ver : BRASIL, Hebe Machado. A música na cidade do Salvador – 1549 – 1900 …, Publicação de Prefeitura Municipal de Salvador Comemorativa ao IV centenário da cidade, 1969, p.89. CARVALHO FILHO, José Eduardo Freire de. A devoção do Senhor do Bomfim e sua história, Salvador, Tip. de São Francisco, 1923, p. 138. ALMEIDA, Manuel Antônio de. Memórias de um sargento de milícias, 9a ed., São Paulo, Atica, 1979.

 

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