Domingo com Fernando Sabino

 

Em matéria de automóveis

 

Fernando Sabino

Em matéria de automóveis, seu raciocínio era o seguinte:

— Para que ter automóvel, se eu não sei dirigir?

E se alguém lhe sugeria que aprendesse:

— Para que aprender, se não tenho automóvel?

Um dia, porém, não se sabe como, escapou de seu sofismático raciocínio e apareceu dirigindo um automóvel. Aprendera a dirigir, só Deus sabe como:

— Fazer o carro andar eu faço. Mas não sei como funciona, nem como é lá dentro. Outro dia ameaçou enguiçar e então me perguntaram se não seria o carburador. Só então fiquei sabendo que meu carro dispõe de um carburador.

O que o encanta principalmente é o poder sugestivo de certos nomes: carburador, embreagem, chassi. radiador, cárter, diferencial.

— Fala-se também numa famosa mola de seguimento, que deve ser muito importante. Para mim não há alternativa: se enguiçar, desço e tomo um táxi. Imagine se eu tiver de ficar dentro do carro indagando: será o dínamo? a bateria, os acumuladores? falta de força no chassi? falta de óleo na bateria?

Tive de adverti-lo de que bateria e acumuladores eram uma coisa só, e que no radiador só se coloca água.

  — Eu sei, eu sei: aliás, o meu carro, apesar de novo deve estar com algum defeito no radiador, não gasta água nunca! Todas as vezes que mando botar água o homem diz que não é preciso, já tem. Com o óleo é a mesma coisa. Abrem a tampa do carro e retiram lá de dentro, de um lugar que jamais consegui ver direito onde é. um ferrinho comprido, enxugam o ferrinho, tornam a enfiar e retiram de novo, me mostram a ponta pingando óleo e dizem que não é preciso. Nunca é preciso.

— Você não costuma lubrificar o carro?

— Já lubrifiquei uma vez. Isso é fácil: basta levar o carro no posto e dizer: lubrificação geral, trocar o óleo do cárter. Não me esqueço, por causa daquele detetive dos folhetos do meu tempo, o Nick Cárter.

— Convém não esquecer também a água da bateria. Tem de ser água destilada.

 Isto ele também já sabia. Um dia o carro não quis pegar e alguém lhe disse que devia ser a água da bateria. Foi a um posto e mandou que olhassem se tinha água na bateria. Tinha. Então tirem, pediu. O sujeito ficou a olhá-lo como se ele fosse doido: tirar a água? Então ele disse apenas a palavra mágica, que resolve tudo:

— Verifiquem.

  Verificaram, enquanto ele aguardava, meio ressabiado. O homem do posto se aproximou, misterioso:

— Elemento seco.

 Olharam-se mutuamente, em silêncio, sem que qualquer sombra de compreensão perpassasse entre os dois, esclarecendo os mistérios insondáveis da mecânica dos semoventes. Eis que impenetrável é o desígnio dos motores de explosão e traiçoeira a força dos acumuladores.

— Elemento seco?

 Elemento seco! Secam-se os elementos e esotérico se torna o segredo que faz o poderio dos seres vivos no comando das máquinas inertes. Num repente de inspiração divinatória, com a voz embargada do emoção, ele sugeriu:

— Deve ser o giguelê.

 Giguelê — palavra mágica que ele um dia ouviu alguém pronunciar, denunciando a existência de uma peça pequenina que não sabe para que serve nem onde fica, mas da qual certamente emana a energia que movimenta os automóveis, num fluxo de divina inspiração como o que movimenta a dança religiosa em torno à diminuta imagem de Exu e outros deuses pagãos.

— No mais — arremata ele — tirante o giguelê, em matéria de automóveis estou com as mulheres. Para elas como para mim um carro se compõe apenas de duas coisas: buzina e volante.

Texto extraído do livro “Quadrante 2”, 4ª edição – Editora do Autor – Rio de Janeiro, 1963, págs.108-110.

Broken car in cartoon style for repair or service concept