Último texto de João Ubaldo Ribeiro

 

 

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O último texto de João Ubaldo, que deveria ser publicado no próximo domingo, fala sobre regras e teve sua publicação antecipara para hoje, 18/07/2014, dia da sua morte.

 

O correto uso do papel higiênico

 

O título acima é meio enganoso, porque não posso considerar-me uma autoridade no uso de papel higiênico, nem o leitor encontrará aqui alguma dica imperdível sobre o assunto. Mas é que estive pensando nos tempos que vivemos e me ocorreu que, dentro em breve, por iniciativa do Executivo ou de algum legislador, podemos esperar que sejam baixadas normas para, em banheiros públicos ou domésticos, ter certeza de que estamos levando em conta não só o que é melhor para nós como para a coletividade e o ambiente. Por exemplo, imagino que a escolha da posição do rolo do papel higiênico pode ser regulamentada, depois que um estudo científico comprovar que, se a saída do papel for pelo lado de cima, haverá um desperdício geral de 3.28 por cento, com a consequência de que mais lixo será gerado e mais árvores serão derrubadas para fazer mais papel. E a maneira certa de passar o papel higiênico também precisa ter suas regras, notadamente no caso das damas, segundo aprendi outro dia, num programa de tevê.

Tudo simples, como em todas as medidas que agora vivem tomando, para nos proteger dos muitos perigos que nos rondam, inclusive nossos próprios hábitos e preferências pessoais. Nos banheiros públicos, como os de aeroportos e rodoviárias, instalarão câmeras de monitoramento, com aplicação de multas imediatas aos infratores. Nos banheiros domésticos, enquanto não passa no Congresso um projeto obrigando todo mundo a instalar uma câmera por banheiro, as recém-criadas Brigadas Sanitárias (milhares de novos empregos em todo o Brasil) farão uma fiscalização por escolha aleatória. Nos casos de reincidência em delitos como esfregada ilegal, colocação imprópria do rolo e usos não autorizados, tais como assoar o nariz ou enrolar um pedacinho para limpar o ouvido, os culpados serão encaminhados para um curso de educação sanitária. Nova reincidência, aí, paciência, só cadeia mesmo.

Agora me contam que, não sei se em algum estado ou no país todo, estão planejando proibir que os fabricantes de gulodices para crianças ofereçam brinquedinhos de brinde, porque isso estimula o consumo de várias substâncias pouco sadias e pode levar a obesidade, diabetes e muitos outros males. Justíssimo, mas vejo um defeito. Por que os brasileiros adultos ficam excluídos dessa proteção? O certo será, para quem, insensata e desorientadamente, quiser comprar e consumir alimentos industrializados, apresentar atestado médico do SUS, comprovando que não se trata de diabético ou hipertenso e não tem taxas de colesterol altas. O mesmo aconteceria com restaurantes, botecos e similares. Depois de algum debate, em que alguns radicais terão proposto o Cardápio Único Nacional, a lei estabelecerá que, em todos os menus, constem, em letras vermelhas e destacadas, as necessárias advertências quanto a possíveis efeitos deletérios dos ingredientes, bem como fotos coloridas de gente passando mal, depois de exagerar em comidas excessivamente calóricas ou bebidas indigestas. O que nós fazemos nesse terreno é um absurdo e, se o estado não nos tomar providências, não sei onde vamos parar.

Ainda é cedo para avaliar a chamada lei da palmada, mas tenho certeza de que, protegendo as nossas crianças, ela se tornará um exemplo para o mundo. Pelo que eu sei, se o pai der umas palmadas no filho, pode ser denunciado à polícia e até preso. Mas, antes disso, é intimado a fazer uma consulta ou tratamento psicológico. Se, ainda assim, persistir em seu comportamento delituoso, não só vai preso mesmo, como a criança é entregue aos cuidados de uma instituição que cuidará dela exemplarmente, livre de um pai cruel e de uma mãe cúmplice. Pai na cadeia e mãe proibida de vê-la, educada por profissionais especializados e dedicados, a criança crescerá para tornar-se um cidadão exemplar. E a lei certamente se aperfeiçoará com a prática, tornando-se mais abrangente. Para citar uma circunstância em que o aperfeiçoamento é indispensável, lembremos que a tortura física, seja lá em que hedionda forma – chinelada, cascudo, beliscão, puxão de orelha, quiçá um piparote -, muitas vezes não é tão séria quanto a tortura psicológica. Que terríveis sensações não terá a criança, ao ver o pai de cara amarrada ou irritado? E os pais discutindo e até brigando? O egoísmo dos pais, prejudicando a criança dessa maneira desumana, tem que ser coibido, nada de aborrecimentos ou brigas em casa, a criança não tem nada a ver com os problemas dos adultos, polícia neles.

Sei que esta descrição do funcionamento da lei da palmada é exagerada, e o que inventei aí não deve ocorrer na prática. Mas é seu resultado lógico e faz parte do espírito desmiolado, arrogante, pretensioso, inconsequente, desrespeitoso, irresponsável e ignorante com que esse tipo de coisa vem prosperando entre nós, com gente estabelecendo regras para o que nos permitem ver nos balcões das farmácias, policiando o que dizemos em voz alta ou publicamos e podendo punir até uma risada que alguém considere hostil ou desrespeitosa para com alguma categoria social. Não parece estar longe o dia em que a maioria das piadas será clandestina e quem contar piadas vai virar uma espécie de conspirador, reunido com amigos pelos cantos e suspeitando de estranhos. Temos que ser protegidos até da leitura desavisada de livros. Cada livro será acompanhado de um texto especial, uma espécie de bula, que dirá do que devemos gostar e do que devemos discordar e como o livro deverá ser comentado na perspectiva adequada, para não mencionar as ocasiões em que precisará ser reescrito, a fim de garantir o indispensável acesso de pessoas de vocabulário neandertaloide. Por enquanto, não baixaram normas para os relacionamentos sexuais, mas é prudente verificar se o que vocês andam aprontando está correto e não resultará na cassação de seus direitos de cama, precatem-se.

 Fonte: Uol  

 

Festa em família

 

Foto: Leni David

Aniversário de Hilda Carneiro

 

Minha mãe completou 87 anos de vida, ontem, dia 18 de maio. Filhos, netos, bisnetos, genros, noras, todos participaram da festa com muita alegria, não só pelo aniversário, mas por tudo que ela representa para nós.

Foto Leni David – Confecção do bolo – Iara Carneiro

Dona Hilda é mãe de 10 filhos, todos vivos – 7 mulheres e 3 homens. Mulher batalhadora e destemida, exemplo de força e coragem.

Familia reunida. Da esquerda para a direita; ana Sofia, Silvia, João, Iara, Eu e Cida; Atrás de Cida, Leonel; depois José Raimundo, Elísio (filho de criação) e Flor. Ao centro, sentada, a nossa mãe, Hilda Carneiro. Lígia não aparece na foto porque sumiu na hora do flash.

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Um grande homem, um amigo inesquecível: Bira

 

Vamos lembrar sempre do sorriso largo desse intelectual do povo

Patrícia Moreira*

 

O momento é de pesar, mas, certamente, Bira, como todos os seus alunos, amigos e colegas chamavam o mestre Ubiratan Castro de Araújo, certamente tiraria da manga uma pilhéria inteligente sobre os desígnios da morte, como que a desdenhar, ou a acreditar que por trás dela haveria algo de bom. E a despeito da perda e da saudade, é preciso, mais do que nunca, honrar seu nome e fechar este ciclo, lembrando um pouco de quem foi este homem de sorriso largo, que  partiu para longe nestes primeiros passos de um novo ano.

Conheci Bira, ainda menina, quando ele fazia doutorado na França, por intermédio de minha mãe, Leni David; ambos alunos da também saudosa professora Kátia Mattoso. Anos depois, em 1999, quando ensaiava entrar no Mestrado em História da Ufba, tive o privilégio de ser aceita como aluna especial na turma da disciplina Escravidão e Liberdade, que o professor Ubiratan Castro de Araújo ministrava.

Aulas

Ali, a História (com H maiúsculo), me conquistou de vez. Nas deliciosas aulas do professor Bira, ele sempre recheava os acontecimentos históricos com alguma curiosidade sobre os personagens, ou relatava detalhes pitorescos que davam às suas quatro horas de aula um toque diferente, que nos levava a esquecer do tempo.

Nesta ocasião, tive a honra de ler e traduzir, como trabalho acadêmico, alguns capítulos de sua tese de doutorado, sobre a economia escravagista na Bahia, dois volumes de mais de 600 páginas, escritos em francês, que, salvo engano, continuam inéditos. Do seu trabalho foi publicado A Guerra da Bahia: uma narrativa histórica sobre o processo de conflito social, econômico e racial que aconteceu em Salvador e no Recôncavo entre os anos de 1820 e 1823. Trata-se de textos extraídos da sua tese de doutorado que  integram a série de publicações” Capítulos”, lançada pelo Centro de Estudos Afro-Orientais da Universidade Federal da Bahia e reeditada pela Fundação Gregório de Mattos (da Prefeitura de Salvador), com o objetivo de valorizar a importância da participação popular negra na independência do Brasil,  nos quais retratava de modo particular os acontecimentos do 2 de Julho.

Lutas

Naquelas páginas, a participação dos negros nas lutas pela Independência da Bahia ganharam uma luz especial, contada também de uma forma singular, pois ele também tinha um jeito original de contar a História oficial.

Aliás, Bira não contava, vivia a História. Todos os anos, quando tive a oportunidade de acompanhar o 2 de Julho, lá estava ele desfilando seu entusiasmo pelas ladeiras do Pelourinho, saudando a memória do Batalhão dos Periquitos.

Além do ser querido e amigo, do seu papel como mestre de algumas gerações de historiadores, Bira também tinha seu lado militante, em defesa da cultura afrobrasileira. Mais uma vez, era um militante diferente, destes que dispensam clichês e bandeiras.

Fundação Palmares

À frente da Fundação Palmares, que presidiu nos primeiros anos do governo Lula, e depois à frente da Fundação Pedro Calmon, fez valer sua origem negra ao desenhar e tocar projetos que valorizavam a africanidade da nossa gente. Foi um militante ímpar. Dispensava os radicalismos dos movimentos negros e trabalhava no dia a dia pelo reconhecimento de um legado cultural, pela valorização do negro na sociedade e pela repartição do bolo social.

Bira também levou seu jeito bonachão para a sisuda Academia de Letras da Bahia e escreveu um livro, Histórias de Negro, que sintetiza sua luta e prova aquilo que ele sempre buscou em toda a sua vida: contar a história do povo da Bahia, sob a ótica do negro. Reação à opressão.

Sabedoria

Por tudo isso e muito mais, a velha cidade da Bahia, como ele gostava de dizer, ficou mais vazia, mais triste; perdeu um intelectual e um homem do povo. Bira leva consigo uma sabedoria de vida por fazer as coisas acontecerem de um jeito inusitado. Deixa-nos sua sabedoria acadêmica, sua obra, que ainda está para ser revelada para os historiadores de hoje e de amanhã.

*Patrícia Moreira é jornalista e mestre em História pela Ufba.

Fonte: O texto foi publicado originalmente no Jornal A Tarde de 04/01/2013, p. 7.

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