Confissão de Manuel Bandeira

 

Hoje encontrei num classificador cheio de papéis, que guardei ao longo dos anos, uma preciosidade; entre eles a crônica de Manuel Bandeira falando da tuberculose da qual foi vítima na sua juventude. Lembro que fiquei muito emocionada quando li a crônica pela primeira vez e como sempre faço com tudo que me toca, guardei preciosamente a folha datilografada. Hoje, ao encontrá-la, decidi publicá-la aqui no blog. Ela precisa viajar por aí para que outras pessoas, principalmente os jovens, conheçam esta história de superação.

 Minha adolescência

A história da minha adolescência é a história da minha doença. Adoecia aos 18 anos quando estava fazendo o curso de engenheiro-arquiteto da Escola Politécnica de São Paulo. A moléstia não me chegou sorrateiramente, como costumava fazer, com emagrecimento, febrinha, febrinha, um pouco de tosse, não; caiu sobre mim de supetão e com toda a violência, como uma machadada de Brucutu. Durante meses fiquei entre a vida e a morte. Tive de abandonar para sempre os estudos. Como consegui com os anos levantar-me desse abismo de padecimentos e tristezas é coisa que me parece a mim e aos que me conheceram então um verdadeiro milagre. Aos 31 anos, ao editar o meu primeiro livro de versos, A cinza das horas, era praticamente um inválido Publicando-o, não tinha de todo a intenção de iniciar uma carreira literária. Aquilo era antes o meu testamento – testamento da minha adolescência. Mas os estímulos que recebi fizeram-me persistir nessa atividade poética, que eu exercia mais como um simples desabafo dos meus desgostos íntimos, da minha forçada ociosidade. Hoje vivo admirado de ver que essa minha obra de poeta menor – de poeta rigorosamente menor – tenha podido suscitar tantas simpatias.

Conto estas coisas porque a minha dura experiência implica uma lição de otimismo e confiança. Ninguém desanime por grande que seja a pedra do caminho. A do meu parecia intransponível. No entanto, saltei-a. Milagre? Pois isso prova que ainda há milagres.

Bandeira, Manuel. O melhor da crônica brasileira (2). Rio de Janeiro, Cia José Olympio Ed., 1981, p. 79.

E como brinde, dois poemas de Bandeira:

 

Pneumotórax

Febre, hemoptise, dispnéia e suores noturnos.

A vida inteira que podia ter sido e que não foi.

Tosse, tosse, tosse.

 

Mandou chamar o médico:

– Diga trinta e três.

– Trinta e três… trinta e três… trinta e três…

– Respire.

 

– O senhor tem uma escavação no pulmão esquerdo e o pulmão direito infiltrado.

– Então, doutor, não é possível tentar o pneumotórax?

– Não. A única coisa a fazer é tocar um tango argentino.

 

Poética

Estou farto do lirismo comedido

Do lirismo bem comportado

Do lirismo funcionário público com livro de ponto expediente

protocolo e manifestações de apreço ao sr. diretor

 

Estou farto do lirismo que pára e vai averiguar no dicionário

o cunho vernáculo de um vocábulo

 

Abaixo os puristas

Todas as palavras sobretudo os barbarismos universais

Todas as construções sobretudo as sintaxes de exceção

Todos os ritmos sobretudo os inumeráveis

 

Estou farto do lirismo namorador

Político

Raquítico

Sifilítico

De todo lirismo que capitula ao que quer que seja fora de si mesmo.

 

De resto não é lirismo

Será contabilidade tabela de co-senos secretário do amante exemplar

com cem modelos de cartas e as diferentes maneiras de

agradar às mulheres, etc.

 

Quero antes o lirismo dos loucos

O lirismo dos bêbados

O lirismo difícil e pungente dos bêbados

O lirismo dos clowns de Shakespeare

 

– Não quero mais saber do lirismo que não é libertação.

.

Já é carnaval!

 

Bacanal

Quero beber! Cantar asneiras
No esto brutal das bebedeiras
Que tudo emborca e faz em caco…
Evoé Baco!

Lá se me parte a alma levada
No torvelim da mascarada
A gargalhar em doudo assomo…
Evoé Momo!

                                                                Manuel Bandeira

 

Manuel Bandeira e a festa de São João

 

Profundamente

Quando ontem adormeci
Na noite de São João
Havia alegria e rumor
Vozes cantigas e risos
Ao pé das fogueiras acesas.
No meio da noite despertei
Não ouvi mais vozes nem risos
Apenas balões
Passavam errantes
Silenciosamente
Apenas de vez em quando
O ruído de um bonde
Cortava o silêncio
Como um túnel.
Onde estavam os que há pouco
Dançavam
Cantavam
E riam
Ao pé das fogueiras acesas?

— Estavam todos dormindo
Estavam todos deitados
Dormindo
Profundamente.

Quando eu tinha seis anos
Não pude ver o fim da festa de São João
Porque adormeci.

Hoje não ouço mais as vozes daquele tempo
Minha avó
Meu avô
Totônio Rodrigues
Tomásia
Rosa
Onde estão todos eles?
— Estão todos dormindo
Estão todos deitados
Dormindo
Profundamente.
(Manuel Bandeira)