O homem e seu carnaval

 

Carlos Drummond de Antrade

 

Deus me abandonou

 no meio da orgia

 entre uma baiana e uma egípcia.

 Estou perdido.

 Sem olhos, sem boca

 sem dimensões.

 As fitas, as cores, os barulhos

 passam por mim de raspão.

 Pobre poesia.       

 

O pandeiro bate

 é dentro do peito

 mas ninguém percebe.

 Estou lívido, gago.

 Eternas namoradas

 riem para mim

 demonstrando os corpos,

 os dentes.

 Impossível perdoá-las,

 sequer esquecê-las.

 

Deus me abandonou

 no meio do rio.

 Estou me afogando

 peixes sulfúreos

 ondas de éter

 curvas curvas curvas

 bandeiras de préstitos

 pneus silenciosos

 grandes abraços largos espaços

 eternamente.

Capinan – Balança mas Hai-Kai

 

Chaplin

Um vagabundo

Tira do bolso imundo

Um mapa-mundi

 

Poesis

A flor sustenta o caule

Eu não sei como fazer

(Quem sabe se a flor nem sabe?)

 

Intervalo

Entre nós existiria

O precipício de uma ponte

Ou somente travessia?

 

Relâmpagos

Aves que não voam

Lá se vão os trovões

Pássaros que soam

José Carlos Capinan. Poemas. Salvador:  FCJA, COPENE (Col. Casa de Palavras, Série Poesias, 10), 1996, p. 109

O amor antigo vive de si mesmo

 

O Amor Antigo

 O amor antigo vive de si mesmo,

não de cultivo alheio ou de presença.

Nada exige, nem pede. Nada espera,

mas do destino vão nega a sentença.

 

O amor antigo tem raízes fundas,

feitas de sofrimento e de beleza.

Por aquelas mergulha no infinito,

e por estas suplanta a natureza.

 

Se em toda parte o tempo desmorona

aquilo que foi grande e deslumbrante,

o antigo amor, porém, nunca fenece

e a cada dia surge mais amante.

 

Mais ardente, mas pobre de esperança.

Mais triste? Não. Ele venceu a dor,

e resplandece no seu canto obscuro,

tanto mais velho quanto mais amor.

Carlos Drummond de Andrade

 

A dor é inevitável, o sofrimento é opcional

Definitivo

 

Carlos Drummond de Andrade

 

Definitivo, como tudo o que é simples.

Nossa dor não advém das coisas vividas, mas das coisas que foram sonhadas e não se cumpriram.

Sofremos por quê?

Porque automaticamente esquecemos o que foi desfrutado e passamos a sofrer pelas nossas projeções irrealizadas, por todas as cidades que gostaríamos de ter conhecido ao lado do nosso amor e não conhecemos, por todos os filhos que gostaríamos de ter tido junto e não tivemos, por todos os shows e livros e silêncios que gostaríamos de ter compartilhado, e não compartilhamos, por todos os beijos cancelados pela eternidade.

Sofremos não porque nosso trabalho é desgastante e paga pouco, mas por todas as horas livres que deixamos de ter para ir ao cinema, para conversar com um amigo, para nadar, para namorar.

Sofremos não porque nossa mãe é impaciente conosco, mas por todos os momentos em que poderíamos estar confidenciando a ela nossas mais profundas angústias se ela estivesse interessada em nos compreender.

Sofremos não porque nosso time perdeu, mas pela euforia sufocada.

Sofremos não porque envelhecemos, mas porque o futuro está sendo confiscado de nós, impedindo assim que mil aventuras nos aconteçam, todas aquelas com as quais sonhamos e nunca chegamos a experimentar.

Por que sofremos tanto por amor?

O certo seria a gente não sofrer, apenas agradecer por termos conhecido uma pessoa tão bacana, que gerou em nós um sentimento intenso e que nos fez companhia por um tempo razoável, um tempo feliz.

Como aliviar a dor do que não foi vivido? A resposta é simples como um

verso:

Se iludindo menos e vivendo mais!!!

“A cada dia que vivo, mais me convenço de que o desperdício da vida está no amor que não damos, nas forças que não usamos, na prudência egoísta que nada arrisca, e que, esquivando-se do sofrimento, perdemos também a felicidade.”

A dor é inevitável, o sofrimento é opcional…

 

 

Para começar 2014

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Receita de Ano Novo

                               Carlos Drummond de Andrade

Para você ganhar belíssimo Ano Novo

 cor de arco-íris, ou da cor da sua paz,

 Ano Novo sem comparação como todo o tempo já vivido

 (mal vivido ou talvez sem sentido)

 para você ganhar um ano

 não apenas pintado de novo, remendado às carreiras,

 mas novo nas sementinhas do vir-a-ser,

 novo até no coração das coisas menos percebidas

 (a começar pelo seu interior)

 novo espontâneo, que de tão perfeito nem se nota,

 mas com ele se come, se passeia,

 se ama, se compreende, se trabalha,

 você não precisa beber champanha ou qualquer outra birita,

 não precisa expedir nem receber mensagens

 (planta recebe mensagens?

 passa telegramas?).

 Não precisa fazer lista de boas intenções

para arquivá-las na gaveta.

 Não precisa chorar de arrependido

 pelas besteiras consumadas

 nem parvamente acreditar

 que por decreto da esperança

 a partir de janeiro as coisas mudem

 e seja tudo claridade, recompensa,

 justiça entre os homens e as nações,

 liberdade com cheiro e gosto de pão matinal,

 direitos respeitados, começando

 pelo direito augusto de viver.

 Para ganhar um ano-novo

 que mereça este nome,

 você, meu caro, tem de merecê-lo,

 tem de fazê-lo de novo, eu sei que não é fácil,

 mas tente, experimente, consciente.

 É dentro de você que o Ano Novo

 cochila e espera desde sempre.

 

 Texto extraído do “Jornal do Brasil”, Dezembro/1997.