CONCERTO P/ FLAUTA E COPOS DE CRISTAL
Passarei minha vida olhando aquela montanha,
a esperar que ela se mova.
Não se moverá, tenho certeza,
mas passarei minha vida diante dela.
Antonio Brasileiro
CONCERTO P/ FLAUTA E COPOS DE CRISTAL
Passarei minha vida olhando aquela montanha,
a esperar que ela se mova.
Não se moverá, tenho certeza,
mas passarei minha vida diante dela.
Antonio Brasileiro
Ressaca de injustiças!
Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo. E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil, Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho, Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo, Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas, Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante, Que tenho sofrido enxovalhos e calado, Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda; Eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel, Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes, Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar, Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado Para fora da possibilidade do soco; Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas, Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo. Toda a gente que eu conheço e que fala comigo Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho, Nunca foi senão príncipe – todos eles príncipes – na vida… Quem me dera ouvir de alguém a voz humana Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia; Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia! Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam. Arre, estou farto de semideuses! Onde é que há gente no mundo? Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra? Poderão as mulheres não os terem amado, Podem ter sido traídos – mas ridículos nunca! E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído, Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear? Vil no sentido mesquinho e infame da vileza. Álvaro de Campos
|
“A gente pensa uma coisa, acaba escrevendo outra e o leitor entende uma terceira coisa… e, enquanto se passa tudo isso, a coisa propriamente dita começa a desconfiar que não foi propriamente dita..”
Mário Quintana
TOADA
Antonio Brasileiro
Pertencemos ao Universo,
mas o Universo é inventado.
Vamos saindo de lado,
porque o mundo é invertido.
Mas o mundo é divertido
e nós somos o inverso:
sérios, casmurros, contidos
como um bicho de seis lados –
quatro lados embutidos,
os outros dois atolados.
Entro na perna do pinto,
saio na perna do pato.
Quem quiser, me conte cinco.
BAHIA DE TODOS OS SANTOS
A Jorge de Lima
Bahia, minha Bahiazinha,
vou escrever hoje o teu poema, terrinha do meu coração!
Bahia de Todos os Santos,
és u’a morena preguiçosa,
certas horas, dormindo descuidada,
na rede azul que o mar balança.
Não usas, mais, morena, o pano-da-costa listrado
preto e branco,
vermelho e amarelo.
Mãe-natureza te deu um chalé de seda fina,
feito de espumas quentes e folhas verdes.
És faceira,
apetitosa,
e dengosa,
de seios túmidos e pontudos como jabuticaba, verdes e enormes.
Os palacetes Martins Catharino,
o velho e o novo, são as tuas pomas encardidas
que o sol morde com sensação,
o dia inteiro
Eu gosto de ti,
minha Bahia, porque és u´a morena educada,
que tudo sabe e tudo faz.
Eu gosto de ti, quando nos matos, nos candomblés,
tu te remexes devagarinho,
ou ligeirinho,
numa tontura,
numa luxúria,
desesperada.
Eu te amo no “Baiano de Tênis”,
quando te imposturas pra cima da gente.
És melindrosa, neste momento,
de ruge e pó no teu rostinho
estrangeirinho
de bangalô.
E mais me encantas,
quando te encontro
lá na cozinha,
encarvoada,
lambuzada
de azeite doce e de dendê.
Bahia,
o teu vatapá gostoso
está me parecendo, digo sério,
um manjar do céu. E foi provando-o
que o escritor disse que a Paris só falta
um vatapá baiano.
E me ri muito, naquela noite, na “Petisqueira”,
vendo um carioca almofadinha
comendo
e chorando com o ardor
da pimenta de cheiro
e da malagueta.
E todo sulista quer provar,
embora chorando, do teu efó apimentado,
deste caruru que sabes fazer com sururu,
e do vatapá doirado e do acarajé amassado por ti.
Ai! minha Bahia, que coisa gostosa é acarajé!…
É um pomo de ouro,
amarelinho,
redondinho,
delicioso,
que Ogum deixou pra gente.
O, acarajé, minha gentinha,
não tem, não tem aquele
gosto ruim de beijo chupado
que Jorge de Lima diz.
Um acarajé tem o gosto gostoso
de um lábio pintado de menina novinha.
E aquele ardor que nos fica na língua
foi a dentadinha que a menina nos deu.
Ai! Bahia!
as tuas frutas,
a laranja,
o araçá,
o caju,
a jabuticaba, o coco verde comido em Amaralina
foi Nosso Senhor que deixou cair do céu.
Bahia, Bahiazinha guerreira,
morena fértil que tem filhas bonitas, como o Brasil de Álvaro Moreyra!
Feira de Santana, (minha terra)!
Cachoeira,
terra do meu amigo
Clóvis da Silveira Lima;
Santo Amaro
que faz lembrar
os não sei quantos filhos
que deixou aquele barão;
Alagoinhas,
onde mora o velho poeta Assis Tavares;
Ilhéus,
a menina orgulhosa e rica e vaidosa
que só tem vestido de seda radium,
enfeitado de madrepérola e lantejoila,
e arminho,
comprado às custas dos seus caxixes! …
Bahia!
Lá o sino tocou:
é a Bahia que vai rezar
lá na Sé,
na Catedral-Basilica,
em São Francisco
e no Bonfim.
E o convento da Piedade
e o de São Bento
são dois frades rezando,
com o capuz às costas.
“Dlindão!… dlão!…
dilindlão! dilindlão!…”
A Bahia é religiosa,
ela crê em Nosso Senhor.
Ela não tem inveja da França,
porque tem Nossa Senhora das Candeias,
que apareceu a u’a menina
da roça.
Bahia!
Estou ouvindo a música dos teus benditos alegres,
nas romarias que fazes às Candeias,
pelo rio
e pelo mar.
Estou vendo a ponte de São João,
que parece um braço magro de mulher velha e pelancuda,
fazendo carícia ao mar,
se balançando com o peso dos trens
que vão levar
os romeiros
aos pés da Virgem
Mãe
de Deus.
Me perdoa, minha Bahia,
o mal que te fiz,
fazendo mal o teu poema.
Publicado em Arco e Flexa, Salvador. I: 42-46, novembro de 1929.
Eurico Alves Boaventura
“O poeta baiano Eurico Alves Boaventura, nascido em 1909 na cidade Feira de Santana, faleceu aos 65 anos (1974) em Salvador. Rebelde participante da turma de Arco e Flexa, revista que congregou de 1928 a 1929, em Salvador, jovens escritores desejosos de acompanhar as transformações da vida literária no Brasil. O grupo liderado por Carlos Chiacchio, escritor de raízes simbolistas, reunia além de Eurico Alves Boaventura, os escritores Pinto de Aguiar, Carvalho Filho, Hélio Simões, Ramayana Chevalier, De Cavalcante Freitas, Queirós Jr. Da época agitada e alegre do Modernismo Arco e Flexa são datados os poemas de Eurico Alves.