Salve o poeta!

 

POEMA DE SETE FACES

Quando nasci, um anjo torto
desses que vivem na sombra
disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida.

As casas espiam os homens
que correm atrás de mulheres.
A tarde talvez fosse azul,
não houvesse tantos desejos.

O bonde passa cheio de pernas:
pernas brancas pretas amarelas.
Para que tanta perna, meu Deus, pergunta meu coração.
Porém meus olhos
não perguntam nada.

O homem atrás do bigode
é serio, simples e forte.
Quase não conversa.
Tem poucos, raros amigos
o homem atrás dos óculos e do bigode.

Meu Deus, por que me abandonaste
se sabias que eu não era Deus
se sabias que eu era fraco.

Mundo mundo vasto mundo,
se eu me chamasse Raimundo
seria uma rima, não seria uma solução.
Mundo mundo vasto mundo,
mais vasto é meu coração.

Eu não devia te dizer
mas essa lua
mas esse conhaque
botam a gente comovido como o diabo.

                              Carlos Drummond de Andrade

 

Fim de semana com Drummond

 Igual-desigual

Eu desconfiava:
todas as histórias em quadrinho são iguais.
Todos os filmes norte-americanos são iguais.
Todos os filmes de todos os países são iguais.
Todos os best-sellers são iguais.
Todos os campeonatos nacionais e internacionais de futebol são
iguais.
Todos os partidos políticos
são iguais.
Todas as mulheres que andam na moda
são iguais.
Todas as experiências de sexo
são iguais.
Todos os sonetos, gazéis, virelais, sextinas e rondós são iguais
e todos, todos
os poemas em versos livres são enfadonhamente iguais.

Todas as guerras do mundo são iguais.
Todas as fomes são iguais.
Todos os amores, iguais iguais iguais.
Iguais todos os rompimentos.
A morte é igualíssima.
Todas as criações da natureza são iguais.
Todas as ações, cruéis, piedosas ou indiferentes, são iguais.
Contudo, o homem não é igual a nenhum outro homem, bicho ou
coisa.
Não é igual a nada.
Todo ser humano é um estranho
ímpar.

Carlos Drummond de Andrade

 

Um poema de Pessoa

 Poema em linha reta

 Nunca conheci quem tivesse levado porrada.

Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.

E eu, tantas  vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,

Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita, indesculpavelmente sujo.

Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,

eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,

que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,

que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,

que tenho sofrido enxovalhos e calado,

que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;

eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel,

eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,

eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,

eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado

para fora da possibilidade do soco;

eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,

eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.

Toda a gente que  eu conheço e que fala comigo

Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho,

Nunca foi senão príncipe – todos eles príncipes – na vida…

Quem me dera ouvir de alguém a voz humana

que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;

que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!

Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.

Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?

Ó principes, meus irmãos,

arre, estou farto  de semideuses!

Onde é que há gente no mundo?

Então sou só eu  que é vil e errôneo nesta terra?

Poderão as   mulheres não os terem amado,

Podem ter sido traídos – mas ridículos nunca!

E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,

Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?

Eu, que venho sido vil, literalmente vil,

vil no sentido mesquinho e infame da vileza.

(Álvaro de Campos)

Os motivos de Cecília

Motivo

Eu canto porque o instante existe
e a minha vida está completa.
Não sou alegre nem sou triste:
sou poeta.
Irmão das coisas fugidias,
não sinto gozo nem tormento.
Atravesso noites e dias
no vento.
Se desmorono ou se edifico,
se permaneço ou me desfaço,
– não sei, não sei. Não sei se fico
ou passo.
Sei que canto. E a canção é tudo.
Tem sangue eterno a asa ritmada.
E um dia sei que estarei mudo:
– mais nada.

(Cecília Meireles)

Um poema de Iderval Miranda

 

Odisseia

 O poeta saltou o muro

        da adolescência

        das lamentações

        de sartre

 

e com a perna tripartida

pelo salto

        pelos cartuchos

        pelos estilhaços

 

corre

ainda hoje

manquejando versos

à amada distante

        (Iderval Miranda)

 

In, Taça de Tule, Salvador, Ed. Cordel, 1975.