Um poema de Pessoa

 Poema em linha reta

 Nunca conheci quem tivesse levado porrada.

Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.

E eu, tantas  vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,

Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita, indesculpavelmente sujo.

Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,

eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,

que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,

que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,

que tenho sofrido enxovalhos e calado,

que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;

eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel,

eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,

eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,

eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado

para fora da possibilidade do soco;

eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,

eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.

Toda a gente que  eu conheço e que fala comigo

Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho,

Nunca foi senão príncipe – todos eles príncipes – na vida…

Quem me dera ouvir de alguém a voz humana

que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;

que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!

Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.

Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?

Ó principes, meus irmãos,

arre, estou farto  de semideuses!

Onde é que há gente no mundo?

Então sou só eu  que é vil e errôneo nesta terra?

Poderão as   mulheres não os terem amado,

Podem ter sido traídos – mas ridículos nunca!

E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,

Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?

Eu, que venho sido vil, literalmente vil,

vil no sentido mesquinho e infame da vileza.

(Álvaro de Campos)

Mini-contos de Luís Pimentel

 

Partidas

Um dia ele foi. Seria só para melhorar de vida, voltaria para buscá-la. Ela ficou contando as noites, depois as rugas, as varizes, a espera infinita. Um dia, a carta: “Não volto mais, nunca mais, para esse fim de mundo”.

Lágrimas pingando no café, ela rabiscou no papel de pão: “Nem eu”. E morreu pouco depois de colocar a resposta nos Correios.

 

Sagrado Coração

Da parede, espetado no prego, o Sagrado Coração de Jesus assistia a tudo: as mãos escorriam do joelho pelas coxas, dedos de unhas sujas invadindo pelas beiradas da calcinha. – Estou conferindo o dever de casa da menina, meu bem.

Não doía tanto a mãe se fazer de sonsa, mas o comentário: “O seu padrasto é um pai para você”.

 O Sagrado Coração vermelho de raiva.

Bem-vinda, Primavera!

  

A Primavera

                                                              Cecília Meireles

 A primavera chegará, mesmo que ninguém mais saiba seu nome, nem acredite no calendário, nem possua jardim para recebê-la. A inclinação do sol vai marcando outras sombras; e os habitantes da mata, essas criaturas naturais que ainda circulam pelo ar e pelo chão, começam a preparar sua vida para a primavera que chega.

Finos clarins que não ouvimos devem soar por dentro da terra, nesse mundo confidencial das raízes, — e arautos sutis acordarão as cores e os perfumes e a alegria de nascer, no espírito das flores.

Há bosques de rododendros que eram verdes e já estão todos cor-de-rosa, como os palácios de Jeipur. Vozes novas de passarinhos começam a ensaiar as árias tradicionais de sua nação. Pequenas borboletas brancas e amarelas apressam-se pelos ares, — e certamente conversam: mas tão baixinho que não se entende.

Oh! Primaveras distantes, depois do branco e deserto inverno, quando as amendoeiras inauguram suas flores, alegremente, e todos os olhos procuram pelo céu o primeiro raio de sol.

Esta é uma primavera diferente, com as matas intactas, as árvores cobertas de folhas, — e só os poetas, entre os humanos, sabem que uma Deusa chega, coroada de flores, com vestidos bordados de flores, com os braços carregados de flores, e vem dançar neste mundo cálido, de incessante luz.

Mas é certo que a primavera chega. É certo que a vida não se esquece, e a terra maternalmente se enfeita para as festas da sua perpetuação.

Algum dia, talvez, nada mais vai ser assim. Algum dia, talvez, os homens terão a primavera que desejarem, no momento que quiserem, independentes deste ritmo, desta ordem, deste movimento do céu. E os pássaros serão outros, com outros cantos e outros hábitos, — e os ouvidos que por acaso os ouvirem não terão nada mais com tudo aquilo que, outrora se entendeu e amou.

Enquanto há primavera, esta primavera natural, prestemos atenção ao sussurro dos passarinhos novos, que dão beijinhos para o ar azul. Escutemos estas vozes que andam nas árvores, caminhemos por estas estradas que ainda conservam seus sentimentos antigos: lentamente estão sendo tecidos os manacás roxos e brancos; e a eufórbia se vai tornando pulquérrima, em cada coroa vermelha que desdobra. Os casulos brancos das gardênias ainda estão sendo enrolados em redor do perfume. E flores agrestes acordam com suas roupas de chita multicor.

Tudo isto para brilhar um instante, apenas, para ser lançado ao vento, — por fidelidade à obscura semente, ao que vem, na rotação da eternidade. Saudemos a primavera, dona da vida — e efêmera.

 In Cecília Meireles – Obra em Prosa – Volume 1, Editora Nova Fronteira – Rio de Janeiro, 1998, pág. 366

 

Os motivos de Cecília

Motivo

Eu canto porque o instante existe
e a minha vida está completa.
Não sou alegre nem sou triste:
sou poeta.
Irmão das coisas fugidias,
não sinto gozo nem tormento.
Atravesso noites e dias
no vento.
Se desmorono ou se edifico,
se permaneço ou me desfaço,
– não sei, não sei. Não sei se fico
ou passo.
Sei que canto. E a canção é tudo.
Tem sangue eterno a asa ritmada.
E um dia sei que estarei mudo:
– mais nada.

(Cecília Meireles)

Um poema de Iderval Miranda

 

Odisseia

 O poeta saltou o muro

        da adolescência

        das lamentações

        de sartre

 

e com a perna tripartida

pelo salto

        pelos cartuchos

        pelos estilhaços

 

corre

ainda hoje

manquejando versos

à amada distante

        (Iderval Miranda)

 

In, Taça de Tule, Salvador, Ed. Cordel, 1975.