A atenção

 

Danuza Leão

Afinal, o que todos queremos da vida –além do básico, claro? Bem, para começar, é preciso definir o que é o básico.

O básico é igual para todo mundo, seja você banqueiro ou Zeca Pagodinho: um bom Jaqueirão para receber os amigos, saúde, uma certa beleza física, algum dinheiro, que não faz mal a ninguém, um pouco de amor, que faz bem enquanto dura e mal quando acaba, e por aí vai. Mas mais que tudo, o que todos queremos, do berçário até a mais provecta idade, é o bem mais precioso: um pouco de atenção.

Para isso, somos capazes de tudo; uma criança, na hora de deitar para dormir, quer a presença da mãe, só olhando. Muito mais tarde, mesmo depois dos 40, os homens vão fazer o que mais gostam –surfar–, e querem que a namorada fique sentadinha na areia, só olhando.

Ninguém suporta ser completamente anônimo, e por isso as pessoas passam a vida buscando o dinheiro, a beleza, o poder ou a fama, para serem reconhecidas pelo garçom quando entram num bar. Tem gente que vai ao mesmo restaurante só por isso, só se hospeda no mesmo hotel, e outros –mais do que você pensa– contratam um divulgador, essa profissão tão moderna, para cuidar de sua imagem, o que significa conseguir publicar uma foto ou uma notinha no jornal de vez em quando. Para quê? Ora, para existir; Nizan Guanaes já disse que o marketing é tudo na vida das pessoas.

Crianças fazem tudo o que passa pela cabeça; sem nenhuma censura, elas choram e gritam para chamar atenção; mais tarde, quando aprendem que não podem mais abrir o berreiro, vão por outros caminhos, para terem certeza de que existem. Umas se vestem de paetês, outras se queixam de doença –e às vezes se esforçam tanto que ficam doentes mesmo, e dá para entender: qualquer coisa na vida, qualquer, é melhor do que a indiferença.

Uns engordam, outros pintam o cabelo de verde, alguns tentam uma carreira de sucesso, de preferência no show business, para serem sempre notados, e quanto mais notados, melhor. Não se trata apenas de vaidade: é uma questão de ter a consciência de que estamos vivos, e se ninguém nos olha é porque não estamos. E se não estamos, de que adianta ter um coração batendo?

Por que você gosta tanto de ir ao médico? No curto tempo de uma consulta –e não se está falando de saúde– a atenção é toda dirigida a você; existe alguma coisa melhor do que ter alguém, mesmo que seja um estranho, perguntando como vai seu apetite, se tem dormido bem, que diga que você precisa deixar de fumar? Atenção: são raros os que fazem isso, pois a maioria pede uma lista de exames e diz para você voltar com os resultados.

E os analistas? Esses são maravilhosos: durante 50 minutos você tem uma pessoa inteligente que ouve os maiores absurdos, compreende tudo –que delícia–, justifica tudo –melhor ainda– e você até sente que não está mais só no mundo. Se ninguém te dá atenção você não existe, daí o drama dos famosos quando voltam ao anonimato.

Atenção verdadeira é fundamental. Quando sua empregada disser que está resfriada, tire dois minutos – só dois- do seu dia, que tem 1.540, para saber o que ela está sentindo, e diga para ela pegar no banheiro o vidro de vitamina C que você trouxe de Nova York e tomar três por dia. Lembre-se de que é ela quem serve seu café da manhã, leva um chazinho quando você chega cansada, tira gelo, lava e passa sua roupa e faz tudo para te agradar.

E quando chegar em casa à tarde, esqueça-se, apenas por uns segundos, do mensalão, das eleições, do seu cabelo que está péssimo, e pergunte se ela está melhor.

Não adianta ter todo o poder e todo o dinheiro do mundo se ninguém pergunta se você melhorou da gripe.

Fonte: Folha/Uol

França, o país onde é gostoso morar

Ana Carolina Peliz

Do 15 ao 21 de outubro a França promove a 23a “Semaine du goût”, algo que em português seria “semana do sabor”. Durante estes dias são realizados ateliês de cozinha ministrados por chefes “estrelados”, cursos sobre as profissões da gastronomia para crianças, degustações de vinhos, visitas a produtores rurais e feiras. Além disso, vários restaurantes oferecem um cardápio especial.

Toda esta maravilhosa orgia gastronômica tem o objetivo de sensibilizar as pessoas, principalmente os mais jovens, para a diversidade de sabores e produtos e principalmente, garantir a transmissão do “savoir-faire” e o futuro da gastronomia francesa.

Eu aproveito a deixa para falar de um dos temas inevitáveis de uma crônica sobre Paris: a culinária.

Um dia alguém me disse – claro, era um francês – que é mais fácil se adaptar em países onde a comida é boa. Simples, mas verdadeiro.

Eu me adaptei tanto que agora vai ser até difícil me “desadaptar”. A França para mim se traduz em cheiro de baguete saindo do forno, croissants crocantes, queijo, queijo e mais queijo.

Antes de vir morar aqui eu não sabia o que era iogurte e não conhecia as declinações da cebola.

Injustamente considerada esnobe, a base da culinária francesa na verdade é simples: produtos de qualidade regados com muita manteiga. Apesar de serem muito exigentes, é muito bom cozinhar para os franceses. Eles não têm preconceitos (comem rã e carne de cavalo!), demonstram grande interesse pelo que você cozinha, reconhecem e agradecem o cozinheiro/a e em geral, gostam muito da comida brasileira.

Raros são os franceses que dão lições sobre como tomar vinho. Se aprendem a degustar a bebida, não é para impressionar a audiência, mas para sublimar o prato e aumentar o prazer gastronômico.

Aliás, prazer na culinária francesa é a palavra de ordem. Deve vir antes, durante e depois de comer.

Antes, na busca do produto ideal, que pode incluir uma caça a champignons na floresta ou uma longa e animada conversa com o açougueiro, e depois, porque na França deve-se passar horas à mesa degustando também a companhia.

As conversas costumam ser sobre comida. Neste país, todo mundo fala de comida quase o tempo todo. Homens de terno na pausa do trabalho, universitários no bandejão, trabalhadores na construção e adolescentes no metrô.

Tudo isso para dizer que, na França, o sabor na verdade está presente todos os dias. E eu, que sou “gourmet” e “gourmande”, aproveito até o último pedaço.

Ana Carolina Peliz é jornalista, mora em Paris há cinco anos onde faz um doutorado em Ciências da Informação e da Comunicação na Universidade Sorbonne Paris IV.

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Tristeza Permitida

 

Martha Medeiros

Se eu disser pra você que hoje acordei triste, que foi difícil sair da cama, mesmo sabendo que o sol estava se exibindo lá fora e o céu convidava para a farra de viver, mesmo sabendo que havia muitas providências a tomar, acordei triste e tive preguiça de cumprir os rituais que faço sem nem prestar atenção no que estou sentindo, como tomar banho, colocar uma roupa, ir pro computador, sair pra compras e reuniões – se eu disser que foi assim, o que você me diz? Se eu lhe disser que hoje não foi um dia como os outros, que não encontrei energia nem pra sentir culpa pela minha letargia, que hoje levantei devagar e tarde e que não tive vontade de nada, você vai reagir como?

Você vai dizer “te anima” e me recomendar um antidepressivo, ou vai dizer que tem gente vivendo coisas muito mais graves do que eu (mesmo desconhecendo a razão da minha tristeza), vai dizer pra eu colocar uma roupa leve, ouvir uma música revigorante e voltar a ser aquela que sempre fui, velha de guerra.

Você vai fazer isso porque gosta de mim, mas também porque é mais um que não tolera a tristeza: nem a minha, nem a sua, nem a de ninguém. Tristeza é considerada uma anomalia do humor, uma doença contagiosa, que é melhor eliminar desde o primeiro sintoma. Não sorriu hoje? Medicamento. Sentiu uma vontade de chorar à toa? Gravíssimo, telefone já para o seu psiquiatra.

A verdade é que eu não acordei triste hoje, nem mesmo com uma suave melancolia, está tudo normal. Mas quando fico triste, também está tudo normal. Porque ficar triste é comum, é um sentimento tão legítimo quanto a alegria, é um registro de nossa sensibilidade, que ora gargalha em grupo, ora busca o silêncio e a solidão. Estar triste não é estar deprimido.

Depressão é coisa muito séria, contínua e complexa. Estar triste é estar atento a si próprio, é estar desapontado com alguém, com vários ou consigo mesmo, é estar um pouco cansado de certas repetições, é descobrir-se frágil num dia qualquer, sem uma razão aparente – as razões têm essa mania de serem discretas.

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Música e teatro: “Nós sempre teremos Paris”

 

Vida Dupla

Artur Xexéo

Minha vocação jornalística foi tardia. Já havia cursado alguns anos de Engenharia, já trabalhava numa agência de turismo, levava o curso de Comunicação só pela obrigação de ter um diploma, o que eu acreditava ser o desejo da minha família, quando a profissão me interessou.

Dediquei-me a ela, por mais de 30 anos, com exclusividade. Nunca tive veleidades literárias. Meu texto não era sagrado. Queria apenas que ele fosse adequado ao veículo em que trabalhasse. Escrevi dois livros. Mas eles foram uma extensão do meu trabalho: uma biografia — praticamente uma reportagem — e uma série de crônicas ligadas à minha experiência profissional.

Há três anos, escrevi uma peça de teatro. Foi uma encomenda. Encarei a tarefa como a do meu livro-biografia. Uma reportagem. Com toques de ficção, mas uma reportagem. Eu estava sendo apenas um dramaturgo acidental. Desta peça, surgiu o convite para fazer, ainda no teatro, a adaptação de um musical da Broadway. Topei a parada. Seria divertido conviver com uma megaprodução. Nesta semana, terei uma nova peça estreando. Ao mesmo tempo, divido com um grupo de roteiristas do primeiro time, sob a batuta de Miguel Falabella, a tarefa de criar as tramas de um novo seriado de TV. Não é mais acidental. Mudei de profissão, nesta altura do campeonato? Não. Passei a levar vida dupla.

“Nós sempre teremos Paris” é o musicalzinho que estreia nesta terça-feira aqui no Rio. É uma comédia romântica, embalada por música francesa, com direção de Jacqueline Lawrence e uma dupla de atores/cantores no palco: Françoise Forton e Tadeu Aguiar. Sou de outros tempos. Cresci ouvindo música francesa. Os jovens de hoje certamente estranhariam muito as festas de minha adolescência. A gente dançava juntinho ao som de Alain Barrière e Gilbert Bécaud. Era animadíssimo. Mas não tenho dúvidas de que, para jovens do século XXI, aquelas festas teriam mais cara de velório.

Ao fazer a pesquisa musical para o espetáculo me dei conta do quanto a música francesa estava adormecida no meu inconsciente. Sou do tempo do iê iê iê e da balada romântica. Dançava ao som de Sylvie Vartan e Johnny Halliday. Mas por que então me lembrava de todas aquelas lindas canções de Charles Trenet, Edith Piaf, Charles Aznavour…? A França, até não muito tempo atrás, sempre esteve mais próxima de nós. Eu me lembro, mesmo naqueles tempos de iê iê iê, de ter assistido a um show de Maurice Chevalier no Teatro Record, em São Paulo. Chevalier não frequentava o meu hit parade. Mas eu sabia de sua importãncia. Não dava para deixar de ver.

Alguns anos depois, assistindo a um filme no Paissandu, descobri “La mer”. Não tinha nada a ver com a França. Era “O despertar amargo” (“A safe place”), com a Tuesday Weld e o Anthony Perkins. Na trilha sonora, estava a belíssima canção de Charles Trenet. Como imaginar uma cena romântica de despedida sem se lembrar do tema de amor de “Os guarda-chuvas de amor” composto por Michel Legrand? Nunca tive nenhum disco de Edith Piaf, mas, como todo mundo, conheço sua gravação de “La vie em rose”.

A música francesa é parte de nosso imaginário afetivo. Assim como a visão fantasiosa de Paris com seus garçons mal-educados, como a cidade em que todo mundo, mas todo mundo mesmo, fuma demais, como o paraíso dos cinéfilos. Conheci gente que viajava para Paris só para ir ao cinema! Não havia programação cinematográfica mais variada em em todo o resto do mundo.

É um pouco dessa música romântica e um outro tanto desta cidade-fantasia que eu pus na pecinha que estreia nesta terça-feira. Ninguém quer ganhar o Prêmio Shell. A gente só quer dividir com a plateia um imaginário musical que eu acredito ser comum a muitos brasileiros. Quem nunca sonhou com Paris ouvindo “C’est si bon”? Bem, pode ser que alguém que esteja chegando agora não tenha mesmo passado pela experiência. Eu passei. E queria dividir isso com mais gente.

Fonte: Blog de Artur Xexéo (O Globo)

 Músicas citadas no texto:

La vie en rose:

La mer:

C’est si bon:

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Largar tudo e recomeçar

Se eu pudesse

                                                                                                     Danuza Leão

Se eu pudesse, mudava minha vida toda; não que ela esteja ruim, mas só para ver que ela pode ser diferente.

Se eu pudesse, me desfaria de muitas coisas, da minha casa e de quase todas as roupas. Afinal, quem precisa de mais do que dois pares de sapatos, dois jeans, quatro camisetas e dois suéteres, sobretudo quando anda pensando em mudar de vida?

Se eu tivesse muitas joias, enterrava todas elas na areia da praia para que um dia alguém enfiasse a mão brincando, assim para nada, e tivesse a felicidade de encontrar um colar de brilhantes. Afinal, dá para viver sem, não dá?

Das algumas garrafas de champanhe guardadas cuidadosamente, na horizontal, daria para abrir mão, sem nenhuma possibilidade de remorso futuro; champanhe, além de engordar, não passa de um espumante metido a alguma coisa, e nem barato dá, de tão fraquinho que é. Dos vinhos, mais fácil ainda; nada melhor do que o velho e bom uísque, com o qual sempre se pode contar.

E as amizades? Aliás, as amizades, não: as relações. Ah, se tivesse coragem, compraria um novo caderno de telefones e passava só aqueles pouquíssimos nomes que realmente têm algum significado, e que são tão poucos que nem precisaria escrever. Guardaria todos de cor, não na cabeça, mas no coração, e um dia me esqueceria de todos eles.

Se eu pudesse, iria recomeçar a vida em outra cidade, talvez em outro país, para nada, só para começar tudo do zero. Para às vezes sofrer bastante, pensando que poderia ter tido mais juízo e não ter feito tantas bobagens, pois se tivesse errado menos poderia ter sido mais feliz -talvez. Mas alguém tem o poder de fazer alguém sofrer, ou a capacidade do sofrimento é um bem pessoal e intransferível?

Se alguém conseguisse ainda me fazer sofrer, seria um acontecimento a ser festejado.

Se eu pudesse -e não tivesse tantos compromissos-, seria vegetariana, passaria as noites em claro e teria muito amor pelos animais e pelas crianças. Mas como tenho horror a qualquer bicho e nenhuma paciência com criancinhas, a não ser com meus bichos e minhas crianças, vou ter que atravessar a vida levando essa pesadíssima cruz -afinal, ficou combinado que de certas coisas não se pode não gostar, e se não se gostar não se pode dizer, que vida.

Se pudesse, largaria tudo e iria embora para um lugar onde ninguém me conhecesse, onde não teria passado nem futuro; para um lugar esquisito no qual não entenderia a língua do povo nem ninguém entenderia a minha. Seríamos todos, assumidamente, estranhos -como somos no edifício onde moramos, no local de trabalho, dentro de nossa família. Ou você pensa que alguém conhece alguém porque dá beijinhos no elevador?

Se eu pudesse, quando acordasse hoje de madrugada saía descalça só com um casaco em cima da pele e ia molhar os pés na água do mar, sozinha. Depois, ia tomar um café no balcão de um botequim, como fazem os homens.

Se eu pudesse, rasgava os talões de cheques, cortava os cartões de crédito com uma tesoura, fazia uma linda fogueira com os casacos de pele e ia saber como é que vivem os que não têm, nunca tiveram e nunca vão ter nada disso. E aproveitava o embalo para cortar os fios dos telefones, jogar o celular na tela da televisão e o computador pela janela -deve ser lindo, um computador voando.

Se eu pudesse, raspava a cabeça, acendia dois cigarros ao mesmo tempo e tomava uma vodca dupla, sem gelo, num copo de geleia. E pegaria uma gilete para picar em pedacinhos a carteira de identidade, o passaporte e o CPF, sem pensar um só instante nas consequências e sem um pingo de medo do futuro.

E jogava na lata de lixo meus lençóis, meus travesseiros de pluma, meu cobertor e engolia minhas pestanas postiças, só para aprender que a vida não é só isso.

Se eu pudesse, esquecia o meu nome, o meu passado e a minha história e ia ser ninguém. Ninguém.

Se eu pudesse, não, se eu quisesse. Pois é, tem dias que a gente está assim, mas passa.

Danuza Leão, jornalista e escritora, aborda temas ligados às relações entre pais e filhos, homens e mulheres, crianças, adolescentes, além de outros assuntos do dia-a-dia. Publicou seu primeiro livro em 1992. Escreve aos domingos na versão impressa do caderno “Cotidiano”.

Fonte: Folha/UOL – Colunista