Uma crônica de Paulo Mendes Campos

Lagartixa

 Sinto nojo  e medo de lagartixas domésticas, acabei odiando o pobre bicho. Outro dia vi um menino brincar com uma, das menores, por sinal, e estremeci como se a criança estivesse a cutucar um violento jacaré.

Meu apartamento vinha sendo a residência de três enormes lagartixinhas. Noites mal dormidas. Pensei: preciso matá-las para livrar-me do receio de que me caiam na cara durante o sono.

Ontem liquidei duas.

A primeira foi mais fácil. Para começar, fitei-a longamente, como a convencer-me de minha superioridade física e moral. Armado de um cabo de vassoura, aproximei-me cauteloso, enquanto ele me olhava, a duvidar de minhas reais intenções. Não é possível – concluí – que este sujeito vai me dar, a mim que nada lhe fiz, uma cacetada. Como eu continuasse avançando recuou um pouco, mas, pejando-se da covardia, tornou a refletir que eu não teria motivos para maltratá-la.

Seu nobre raciocínio custou-lhe o rabo, o rabo porque, no desconcerto da emoção, o golpe desviou-se alguns centímetros do alvo. Enquanto o rabo – momento puro de misterioso pavor – estertorava-se no chão, a bichinha esgueirou-se pela parede, ocultando-se atrás de um móvel. Os saltos do rabo solitário me acabrunhavam. Senti meu valor desfalecer. Agora, no entanto, o problema era outro; tratava-se, piedosamente, de livrar a lagartixa daquele rabo inquieto, ou seja, destruir a lagartixa aleijada. De que vale uma lagartixa sem rabo? De que vale um rabo sem lagartixa. Afastei o móvel, tive a impressão triunfante de que ela fremia de horror.

Desferi o segundo golpe com tal confusão de sentimentos que a infeliz ficou descadeirada. Tonta, sem noção do perigo, começou a arrastar-se penosamente pelo rodapé, desgraciosa e lenta. Com a terceira bordoada, estrebuchou de barriga para cima. É cadáver, respirei.

Coisa nenhuma. Ao remover o corpo, fui surpreendido por um pulo que a colocou de novo, toda estragada, na posição normal. Veio-me um frio ruim à espinha. Tive vontade de sair, dar uma volta pela praia, tomar um conhaque. A essa altura, entretanto, já não podia permitir a mim mesmo fraquezas dessa espécie. O tiro de misericórdia (ai de mim) teria liquidado um gambá.

O assassinato da segunda, (a verificação chocou-me bastante) foi incomparavelmente mais fácil. Menos emocionado, já meio habituado ao crime, desferi apenas dois golpes furiosos e fatais.

Joguei os corpos no lixo, e estava a escrever isto, quando alguém, lendo por cima do meu ombro, corrigiu a minha ignorância em dois pontos: primeiro que lagartixa dá sorte; segundo, que, decepado o rabo de uma lagartixa, cresce-lhe outro. Assim sendo, quanto ao rabo retifico logo: uma lagartixa sem rabo, a longo prazo, vale uma lagartixa inteira. No tocante à sorte, quero dizer que o extermínio das duas inocentes parece que me ajudou muito a libertar-me do medo. A terceira lagartixa, ausente na hora da matança, pode ficar agradecida ao sacrifício de suas irmãs. E se ela me der sorte, eu lhe pouparei a vida.

Paulo Mendes Campos

Paulo Mendes Campos (*1922 – + 1991)- Nasceu em Belo Horizonte, filho do médico e escritor Mário Mendes Campos e de D. Maria José de Lima Campos. Ainda jovem ingressou na vida literária, como integrante da geração mineira a que pertence Fernando Sabino e outros. Em 1945 foi ao Rio de Janeiro, para conhecer o poeta Pablo Neruda, e por lá ficou. No Rio já se encontravam seus melhores amigos de Minas — Sabino, Otto, e Hélio Pellegrino. Passou a colaborar em O Jornal, Correio da Manhã (de qual foi redator durante dois anos e meio) e Diário Carioca. Neste último, assinava a “Semana Literária” e, depois, a crônica diária “Primeiro Plano”. Foi, durante muitos anos, um dos três cronistas efetivos da revista Manchete. Em 1951 lançou seu primeiro livro, “A palavra escrita” (poemas).

Foi tradutor de poesia e prosa inglesa e francesa e traduziu, dentre outros, Júlio Verne, Oscar Wilde, John Ruskin, Shakespeare, além de Neruda, tendo enriquecido sua experiência humana em viagens à Europa e à Ásia. Publicou mais de duas dezenas de livros, entre eles: A Palavra Escrita, poesia, Ed. Hipocampo – Rio de Janeiro, 1951; O Cego de Ipanema, crônicas, Ed. do Autor – Rio de Janeiro, 1960;Hora do Recreio, crônicas, Editora Sabiá- Rio de Janeiro, 1967;O Anjo Bêbado, crônicas, Ed. Sabiá – Rio de Janeiro, 1969; O Amor Acaba – Crônicas Líricas e Existenciais – Ed. Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1999; Cisne de Feltro – Crônicas Autobiográficas – Ed. Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 2000; Alhos e Bugalhos – Ed. Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 2000; Brasil brasileiro — Crônicas do país, das cidades e do povo – Ed. Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 2000;  O gol é necessário — Crônicas esportivas –  Ed. Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 2000.

 

E por falar em futebol…

 

Sermão da planície (para não ser escutado)

 

 Crônica de Carlos Drummond de Andrade publicada no Jornal do Brasil, em 18 de junho de 1974.

 Bem-aventurados os que não entendem nem aspiram a entender de futebol, pois deles é o reino da tranqüilidade.

Bem-aventurados os que, por entenderem de futebol, não se expõem ao risco de assistir às partidas, pois não voltam com decepção ou enfarte.

Bem-aventurados os que não têm a paixão clubista, pois não sofrem de janeiro a janeiro, com apenas umas colherinhas de alegria a título de bálsamo, ou nem isto.

Bem-aventurados os que não escalam, pois não terão suas mães agravadas, seu sexo contestado e sua integridade física ameaçada, ao saírem do estádio.

Bem-aventurados os que não são escalados, pois escapam de vaias, projéteis, contusões, fraturas, e mesmo da glória precária de um dia.

Bem-aventurados  os que não são cronistas esportivos, pois não carecem de explicar o inexplicável e racionalizar a loucura.

Bem-aventurados os fotógrafos que trocaram a documentação do esporte pela dos desfiles de modas, pois não precisam gastar tempo infindável para fotografar o relâmpago de um gol.

Bem-aventurados os fabricantes de bolas e chuteiras, que não recebem as primeiras na cara e as segundas na virilha, como os atletas e assistentes ocasionais de peladas.

Bem-aventurados os que não conseguiram comprar televisão a cores a tempo de acompanhar a Copa do Mundo, pois, assistindo pelo aparelho do vizinho, sofrem sem pagar 20 prestações pelo sofrimento.

Bem-aventurados os surdos, pois não os atinge o estrondar das bombas da vitória, que fabricam outros surdos, nem o matraquear dos locutores, carentes de exorcismo.

Bem-aventurados os que não moram em ruas de torcida institucionalizada, ou em suas imediações, pois só recolhem 50% do barulho preparatório ou comemoratório.

Bem-aventurados os cegos, pois lhes é poupado torturar-se com o espetáculo direto ou televisionado da marcação cerrada, que paralisa os campeões, ou do lance imprevisível, que lhes destrói a invencibilidade.

Bem-aventurados os que nasceram, viveram e se foram antes de 1863, quando se codificaram as leis do futebol, pois escaparam dos tormentos da torcida, inclusive dos ataques cardíacos infligidos tanto pela derrota como pela vitória do time bem-amado.

Bem-aventurados os que, entre a bola e o botão, se contentaram com este, principalmente em camisa, pois se consolam mais facilmente de perder o botão da roupa do que o bicho da vitória.

Bem-aventurados os que não confundem a derrota do time da Lapônia pelo time da Terra do Fogo com a vitória nacional da Terra do Fogo sobre a Lapônia, pois a estes não visita o sentimento de guerra.

Bem-aventurados os que, depois de escutar este sermão, aplicarem todo o ardor infantil no peito maduro para desejar a vitória do selecionado brasileiro nesta e em todas as futuras Copas do Mundo, como faz o velho sermoneiro desencantado, mas torcedor assim mesmo, pois para o diabo vá a razão quando o futebol invade o coração.

 

 

E se eu fosse eu?

 Clarice Lispector

Quando não sei onde guardei um papel importante e a procura se revela inútil, pergunto-me: se eu fosse eu e tivesse um papel importante para guardar, que lugar escolheria? Às vezes dá certo. Mas muitas vezes fico tão pressionada pela frase “se eu fosse eu”, que a procura do papel se torna secundária, e começo a pensar. Diria melhor, sentir.

E não me sinto bem. Experimente: se você fosse você, como seria e o que faria? Logo de início se sente um constrangimento: a mentira em que nos acomodamos acabou de ser levemente locomovida do lugar onde se acomodara. No entanto já li biografias de pessoas que de repente passavam a ser elas mesmas, e mudavam inteiramente de vida. Acho que se eu fosse realmente eu, os amigos não me cumprimentariam na rua porque até minha fisionomia teria mudado. Como? não sei.

Metade das coisas que eu faria se eu fosse eu, não posso contar. Acho, por exemplo, que por um certo motivo eu terminaria presa na cadeia. E se eu fosse eu daria tudo o que é meu, e confiaria o futuro ao futuro.

“Se eu fosse eu” parece representar o nosso maior perigo de viver, parece a entrada nova no desconhecido. No entanto tenho a intuição de que, passadas as primeiras chamadas loucuras da festa que seria, teríamos enfim a experiência do mundo. Bem sei, experimentaríamos enfim em pleno a dor do mundo. E a nossa dor, aquela que aprendemos a não sentir. Mas também seríamos por vezes tomados de um êxtase de alegria pura e legítima que mal posso adivinhar. Não, acho que já estou de algum modo adivinhando porque me senti sorrindo e também senti uma espécie de pudor que se tem diante do que é grande demais.

DOIDA OU SANTA?

                                                         Martha Medeiros

“Estou no começo do meu desespero e só vejo dois caminhos: ou viro doida ou santa”.

São versos de Adélia Prado, retirados do poema A Serenata. Narra a inquietude de uma mulher que imagina que mais cedo ou mais tarde um homem virá arrebatá-la, logo ela que está envelhecendo e está tomada pela indecisão – não sabe como receber  um novo amor não dispondo mais de juventude. E encerra:  “De que modo vou abrir a janela, se não for doida? Como a fecharei, se não for santa?”

Adélia é uma poeta danada de boa. E perspicaz. Como pode uma mulher  buscar  uma  definição exata para si mesma, estando em plena meia-idade, depois de já ter trilhado uma longa estrada onde encontrou alegrias e desilusões,  e  tendo  ainda  mais  estrada  pela frente?  Se ela tiver coragem de passar por mais alegrias e desilusões – e a gente sabe como as desilusões devastam – terá que ser meio doida. Se preferir  se abster de emoções fortes e  apaziguar  seu  coração, então a santidade é a opção. Eu nem preciso dizer o que penso sobre isso, preciso?

Mas vamos lá. Pra começo de conversa, não acredito que haja uma única mulher no mundo que seja santa.. Os marmanjos devem estar de cabelo em pé: como assim, e a minha mãe??? Nem ela, caríssimos, nem ela.

Existe mulher cansada, que é outra coisa. Ela deu  tanto  azar  em suas relações que desanimou. Ela ficou tão sem dinheiro de uns tempos pra cá que deixou de ter vaidade. Ela perdeu tanto a fé em dias melhores  que  passou  a  se  contentar  com  dias  medíocres. Guardou sua loucura em alguma gaveta e nem lembra mais.

Santa mesmo, só Nossa Senhora, mas cá entre nós, não é uma doideira o modo como ela engravidou? (não se escandalize, não me mande e-mails, estou brin-can-do).

Toda mulher é doida. Impossível não ser. A gente nasce com um dispositivo interno que nos informa desde cedo que, sem amor, a vida não vale a pena ser vivida, e dá-lhe usar nosso poder de sedução para encontrar ‘the big one’, aquele que será inteligente, másculo, se importará com nossos sentimentos e não nos deixará na mão jamais. Uma tarefa que dá para ocupar  uma vida, não é mesmo? Mas, além disso,temos que ser independentes, bonitas, ter filhos e fingir de vez em quando que somos santas, ajuizadas, responsáveis, e que nunca, mas nunca,   pensaremos  em jogar tudo pro alto e embarcar num navio-pirata comandado  pelo  Johnny  Depp, ou então virar uma cafetina, sei lá, diga aí uma fantasia secreta, sua imaginação deve ser melhor que a minha.

Eu só conheço mulher louca. Pense em qualquer uma que você conhece e me diga se ela não tem ao menos três dessas qualificações: exagerada,dramática, verborrágica, maníaca, fantasiosa, apaixonada, delirante.Pois então. Também é louca. E fascina a todos.

Todas as mulheres estão dispostas a abrir a janela, não importa a  idade  que   tenham. Nossa insanidade tem nome: chama-se Vontade de Viver até a Última Gota. Só as cansadas é que se recusam a levantar da cadeira para ver quem está chamando lá fora. E santa, fica combinado, não existe. Uma mulher que só reze, que tenha desistido dos prazeres da inquietude, que não deseja mais nada? Você vai concordar comigo: só sendo louca de pedra.                   

 A SERENATA

                 Adélia Prado

Uma noite de lua pálida e gerânios
ele viria com boca e mãos incríveis
tocar flauta no jardim.
Estou no começo do meu desespero
e só vejo dois caminhos:
ou viro doida ou santa.
Eu que rejeito e exprobo
o que não for natal como sangue e veias
descubro que estou chorando todo dia,
os cabelos entristecidos,
a pele assaltada de indecisão.
Quando ele vier, porque é certo que vem,
de que modo vou chegar ao balcão sem juventude?
A lua, os gerânios e ele serão os mesmos
– só a mulher entre as coisas envelhece.
De que modo vou abrir a janela, se não for doida?
Como a fecharei, se não for santa?

Faxina no céu

                                                                                         Leni David 

As nuvens escuras foram chegando devagar e cobriram o azul. Em pouco tempo, trovões ribombavam e relâmpagos desenhavam ziguezagues no espaço.

A mãe fechou portas e janelas, desligou a televisão;  sobre a mesa da sala, pôs folhas de papel, cola e revistas antigas.  Ao lado das meninas recortava papéis coloridos e inventava desenhos,  jeito de esconder que tinha medo de trovoadas.

A chuva caía forte e intermitente; mais trovões, mais relâmpagos e uma queda da energia elétrica;  felizmente ainda era dia.

Mais um pipoco, daqueles que parecem partir o céu em milhões de pedaços. Todas estremeceram, se  entreolharam, e a menorzinha com os olhos arregalados exlamou:

– Eta! O céu estava sujo, mas Deus exagerou na faxina… Desse jeito ele vai quebrar tudo!