Um poema de Juraci Dorea

 

ENREDO

Inútil  é tentar conhecer o homem:

sempre haverá um rosto  (oculto)

a decompor o homem em trevas.

 

Pouco importa o jogo

a fantasia, a valsa:

o homem é o mesmo

e seu corpo dança

entre máscaras.

 

É inútil tentar conhecer o homem:

haverá sempre um lobo    (oculto)

a devorar, do homem, o sopro,

a alma, os dentes.

    (Juraci Dórea – Novembro 1999)

 

Gilberto Freyre: um poema em homenagem à Bahia

 

Apresentação de Edson Nery da Fonseca.

Embora tenha concluído o curso de mestrado em ciências sociais na Universidade Columbia — onde foi aluno de Franz Boas, fundador da antropologia cultural — Gilberto Freyre considerava-se, acima de tudo, escritor. E foi como ensaísta que ele projetou-se no cenário nacional: ensaísta à la Montaigne e Bacon.

Mas em 1925 — muito antes, portanto, de distinguir-se com livros como Casa Grande & Senzala (1933) e Sobrados e Mucambos (1936) — Gilberto Freyre escreveu um longo poema inspirado por sua primeira visita à Cidade de Salvador: Bahia de todos os santos e de quase todos os pecados. Impresso no mesmo ano em reduzidíssima edição da recifense Revista do Norte, o poema deixou Manuel Bandeira entusiasmado. Tanto que em carta de 4 de junho de 1927 escreveu: “Teu poema, Gilberto, será a minha eterna dor de corno. Não posso me conformar com aquela galinhagem tão dozada, tão senvergonhamente lírica, trescalando a baunilha de mulata asseada. S!” (cf. Manuel Bandeira, Poesia e Prosa. Rio de Janeiro: Aguilar, 1958, v. II: Prosa, p. 1398).

O poema tem três versões: a primeira foi reproduzida por Manuel Bandeira em sua Antologia dos Poetas Brasileiros Bissextos Contemporâneos (1946); a segunda, modificada pelo autor, foi publicada na revista carioca O Cruzeiro de 20 de janeiro de 1942; e a terceira aparece nos livros Talvez Poesia (José Olympio, 1962) e Poesia Reunida (Edições Pirata, 1980).

Fonte: Antonio Miranda  

BAHIA DE TODOS OS SANTOS E DE QUASE TODOS OS PECADOS

Bahia de Todos os Santos (e de quase todos os pecados)

casas trepadas umas por cima das outras

casas, sobrados, igrejas, como gente se espremendo pra sair num

retrato de revista ou jornal

(vaidade das vaidades! diz o Eclesiastes)

igrejas gordas (as de Pernambuco são mais magras

toda a Bahia é uma maternal cidade gorda

como se dos ventres empinados dos seus montes

dos quais saíram tantas cidades do Brasil

inda outras estivessem para sair

ar mole oleoso

cheiro de comida

cheiro de incenso

cheiro de mulata

bafos quentes de sacristias e cozinhas

panelas fervendo

temperos ardendo

o Santíssimo Sacramento se elevando

mulheres parindo

cheiro de alfazema

remédios contra sífilis

letreiros como este:

Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo

(Para sempre! Amém!)

automóveis a 30$ a hora

e um ford todo osso sobe qualquer ladeira

saltando pulando tilintando

para depois escorrer sobre o asfalto novo

que branqueja como dentadura postiça em terra encarnada

(a terra encarnada de 1500)

gente da Bahia! preta, parda, roxa, morena

cor dos bons jacarandás de engenho do Brasil

(madeira que cupim não rói)

sem rostos cor de fiambre

nem corpos cor de peru frio

Bahia de cores quentes, carnes morenas, gostos picantes

eu detesto teus oradores, teus otaviosmangabeiras

mas gosto das tuas iaiás, tuas mulatas, teus angus

tabuleiros, flor de papel, candeeirinhos,

tudo à sombra das tuas igrejas

todas cheias de anjinhos bochechudos

sãojoões sãojosés meninozinhosdeus

e com senhoras gordas se confessando a frades mais magros do que

eu

O padre reprimido que há em mim

se exalta diante de ti Bahia

e perdoa tuas superstições

teu comércio de medidas de Nossa Senhora e do Nossossenhores do

Bonfim

e vê no ventre dos teus montes e das tuas mulheres

conservadoras da fé uma vez entregue aos santos

multiplicadores de cidades cristãs e de criaturas de Deus

Bahia de Todos os Santos

Salvador

São Salvador

Bahia

Negras velhas da Bahia

vendendo mingau angu acarajé

Negras velhas de xale encarnado

peitos caídos

mães de mulatas mais belas dos Brasis

mulatas de gordo peito em bico como para dar de mamar a todos os

meninos do Brasil.

Mulatas de mãos quase de anjos

mãos agradando ioiôs

criando grandes sinhôs quase iguais aos do Império

penteando iaiás

dando cafuné nas sinhás

enfeitando tabuleiros cabelos santos anjos

lavando o chão de Nosso Senhor do Bonfim

pés dançando nus nas chinelas sem meia

cabeções enfeitados de rendas

estrelas marinhas de prata

tetéias de ouro

balangandãs

presentes de português

óleo de coco

azeite-de-dendê

Bahia

Salvador

São Salvador

Todos os Santos

Tomé de Sousa

Tomés de Sousa

padres, negros, caboclos

Mulatas quadrarunas octorunas

a Primeira Missa

os malês

índias nuas

vergonhas raspadas

candomblés santidades heresias sodomias

quase todos os pecados

ranger de camas-de-vento

corpos ardendo suando de gozo

Todos os Santos

missa das seis

comunhão

gênios de Sergipe

bacharéis de pince-nez

literatos que lêem Menotti del Picchi e Mário Pinto Serpa

mulatos de fala fina

muleques

capoeiras feiticeiras

chapéus-do-chile

Rua Chile

viva J. J. Seabra morra J. J. Seabra

Bahia

Salvador

São Salvador

Todos os Santos

um dia  voltarei com vagar ao teu seio moreno brasileiro

às tuas igrejas onde pregou Vieira moreno hoje cheias de frades

ruivos e bons

aos teus tabuleiros escancarados em x (esse x é o futuro do Brasil)

a tuas a teus sobrados cheirando a incenso comida alfazema

cacau.

Extraído de: FREYRE, Gilberto. Bahia e baianos. Apresentação de Edson Nery da Fonseca. Salvador: Fundação das Artes, 1990. 167 p.

14 de março – Dia Nacional da Poesia

 

 

A palavra poesia tem origem grega – poíesis – e significa ação de fazer algo, criação. A poesia é definida como a arte de escrever em versos, aquilo que desperta o sentimento do belo, com o poder de modificar ou imitar a realidade, segundo a percepção do artista. No passado os poemas eram cantados, acompanhados pela lira, um instrumento musical muito comum na Grécia antiga. Por isso, diz-se que a poesia pertence ao gênero lírico. Hoje podemos falar de poemas épicos, dramáticos e líricos.

As linhas de um poema são os versos. Ao conjunto de versos dá-se o nome de estrofe. Os versos podem rimar – ou não – entre si e obedecer a determinada métrica, que é a contagem das sílabas poéticas.

Os versos mais tradicionais são as redondilhas; a redondilha menor tem cinco sílabas, e a maior, sete; os versos decassílabos têm dez sílabas; os alexandrinos, doze.

A rima é um recurso utilizado para dar musicalidade aos versos, baseando-se na semelhança sonora das palavras do final ou, às vezes, do interior dos versos.

Rima, ritmo e métrica são características especiais de um poema e que podem variar, dependendo do movimento literário da época. A partir do Modernismo (1922) os versos livres são os mais utilizados.

 

O Dia Nacional da Poesia é comemorado no dia 14 de março em homenagem ao nascimento do poeta baiano Antônio Frederico de Castro Alves. Poeta do Romantismo, ele foi um dos maiores nomes da poesia brasileira.

Antônio Frederico de Castro Alves nasceu a 14 de março de 1847 na Fazenda Cabaceiras, comarca de Muritiba, a 42 Km da vila de Nossa Senhora da Conceição de “Curralinho”, hoje Castro Alves, na Bahia, e faleceu a 6 de julho de 1871, na cidade do Salvador, com apenas 24 anos de idade.

Em 1862 ingressou na Faculdade de Direito de Recife. Datam dessa época os seus amores pela atriz portuguesa Eugênia Câmara e a composição dos primeiros poemas abolicionistas. Em 1867 deixa Recife, indo para a Bahia onde faz representar seu drama Gonzaga. Segue depois para o Rio de Janeiro, recebendo incentivos dos escritores José de Alencar, Francisco Otaviano e Machado de Assis.

A 11 de novembro de 1868, em uma caçada nos arredores de São Paulo, feriu o calcanhar esquerdo com um tiro de espingarda, resultando-lhe a amputação do mesmo. Sobreveio, em seguida, a tuberculose, que lhe obriga a retornar à sua terra natal, onde veio a falecer.

Castro Alves pertenceu à Terceira Geração da Poesia Romântica (Social ou Condoreira), caracterizada pelos ideais abolicionistas e republicanos, sendo considerado a maior expressão da época

Suas obras mais destacadas  são: Espumas Flutuantes, Gonzaga ou A Revolução de Minas, A Cachoeira de Paulo Afonso,Vozes D’África, O Navio Negreiro, entre outras. Suas poesias são marcadas pela crítica à escravidão, motivo pelo qual é conhecido como “Poeta dos Escravos.

 

Poemas de Castros Alves

                                                      Vozes d’África
 
 

                                     Deus! ó Deus! onde estás que não respondes?  
                                     Em que mundo, em qu’estrela tu t’escondes  
                                     Embuçado nos céus? 
                                     Há dois mil anos te mandei meu grito,  
                                     Que embalde desde então corre o infinito… 
                                               Onde estás, Senhor Deus?…
 

                                     Qual Prometeu tu me amarraste um dia  
                                     Do deserto na rubra penedia 
                                             — Infinito: galé! … 
                                     Por abutre — me deste o sol candente,  
                                     E a terra de Suez — foi a corrente  
                                                 Que me ligaste ao pé…
 

                                     O cavalo estafado do Beduíno  
                                     Sob a vergasta tomba ressupino  
                                     E morre no areal. 
                                     Minha garupa sangra, a dor poreja,  
                                     Quando o chicote do simoun dardeja  
                                                O teu braço eternal.
 

                                     Minhas irmãs são belas, são ditosas…  
                                     Dorme a Ásia nas sombras voluptuosas  
                                     Dos haréns do Sultão. 
                                     Ou no dorso dos brancos elefantes  
                                     Embala-se coberta de brilhantes  
                                     Nas plagas do Hindustão.
 

                                     Por tenda tem os cimos do Himalaia…  
                                     Ganges amoroso beija a praia  
                                     Coberta de corais … 
                                     A brisa de Misora o céu inflama; 
                                     E ela dorme nos templos do Deus Brama, 
                                                  — Pagodes colossais…
 

                                     A Europa é sempre Europa, a gloriosa! … 
                                     A mulher deslumbrante e caprichosa, 
                                     Rainha e cortesã. 
                                     Artista — corta o mármor de Carrara;  
                                     Poetisa — tange os hinos de Ferrara, 
                                     No glorioso afã! …
 

                                     Sempre a láurea lhe cabe no litígio… 
                                     Ora uma c’roa, ora o barrete frígio  
                                     Enflora-lhe a cerviz. 
                                     Universo após ela — doudo amante  
                                     Segue cativo o passo delirante  
                                     Da grande meretriz.
 

                                                ………………………………
 

                                     Mas eu, Senhor!… Eu triste abandonada  
                                     Em meio das areias esgarrada, 
                                     Perdida marcho em vão! 
                                     Se choro… bebe o pranto a areia ardente;  
                                     talvez… p’ra que meu pranto, ó Deus clemente! 
                                     Não descubras no chão…
 

                                     E nem tenho uma sombra de floresta…  
                                     Para cobrir-me nem um templo resta  
                                     No solo abrasador… 
                                     Quando subo às Pirâmides do Egito  
                                     Embalde aos quatro céus chorando grito: 
                                     “Abriga-me, Senhor!…”
 

                                     Como o profeta em cinza a fronte envolve,  
                                     Velo a cabeça no areal que volve  
                                     O siroco feroz… 
                                     Quando eu passo no Saara amortalhada…  
                                     Ai! dizem: “Lá vai África embuçada  
                                     No seu branco albornoz. . . “
 

                                     Nem vêem que o deserto é meu sudário,  
                                     Que o silêncio campeia solitário  
                                     Por sobre o peito meu. 
                                     Lá no solo onde o cardo apenas medra  
                                     Boceja a Esfinge colossal de pedra  
                                     Fitando o morno céu.  

                                                …………………………………
 

                                     Não basta inda de dor, ó Deus terrível?!  
                                     É, pois, teu peito eterno, inexaurível 
                                     De vingança e rancor?…  
                                     E que é que fiz, Senhor? que torvo crime  
                                     Eu cometi jamais que assim me oprime  
                                     Teu gládio vingador?!
 

                                                ………………………………….
                                               
 

                                     Vi a ciência desertar do Egito…  
                                     Vi meu povo seguir — Judeu maldito — 
                                     Trilho de perdição. 
                                     Depois vi minha prole desgraçada  
                                     Pelas garras d’Europa — arrebatada — 
                                     Amestrado falcão! …
 

                                     Cristo! embalde morreste sobre um monte  
                                     Teu sangue não lavou de minha fronte  
                                     A mancha original. 
                                     Ainda hoje são, por fado adverso,  
                                     Meus filhos — alimária do universo, 
                                     Eu — pasto universal…
 

                                     Hoje em meu sangue a América se nutre  
                                     Condor que transformara-se em abutre, 
                                     Ave da escravidão, 
                                     Ela juntou-se às mais… irmã traidora  
                                     Qual de José os vis irmãos outrora  
                                     Venderam seu irmão.
 

                                     Basta, Senhor!  De teu potente braço  
                                     Role através dos astros e do espaço  
                                     Perdão p’ra os crimes meus!  
                                     Há dois mil anos eu soluço um grito… 
                                     escuta o brado meu lá no infinito, 
                                                 Meu Deus!  Senhor, meu Deus!!… 
  
                                                            São Paulo, 11 de junho de 1868

                        Adormecida

Uma noite, eu me lembro… Ela dormia
Numa rede encostada molemente…
Quase aberto o roupão… solto o cabelo
E o pé descalço do tapete rente.

‘Stava aberta a janela. Um cheiro agreste
Exalavam as silvas da campina…
E ao longe, num pedaço do horizonte,
Via-se a noite plácida e divina.

De um jasmineiro os galhos encurvados,
Indiscretos entravam pela sala,
E de leve oscilando ao tom das auras,
Iam na face trêmulos — beijá-la.

Era um quadro celeste!… A cada afago
Mesmo em sonhos a moça estremecia…
Quando ela serenava… a flor beijava-a…
Quando ela ia beijar-lhe… a flor fugia…

Dir-se-ia que naquele doce instante
Brincavam duas cândidas crianças…
A brisa, que agitava as folhas verdes,
Fazia-lhe ondear as negras tranças!

E o ramo ora chegava ora afastava-se…
Mas quando a via despertada a meio,
Pra não zangá-la… sacudia alegre
Uma chuva de pétalas no seio…

Eu, fitando esta cena, repetia
Naquela noite lânguida e sentida:
“Ó flor! – tu és a virgem das campinas!
“Virgem! – tu és a flor de minha vida!…”

Poemas de Raymundo Luiz

 

 

 

POÇO

Perder-se.

Ai, perder-se – sim

no próprio mistério do trajeto

das sacudidelas

agônicas

 

SEGREDOS

Tudo guardado

no cofre das reminiscências:

oblíquas pontes

flores no cio

latitudes calosas.

 

Tudo o que já não é o mesmo

e visto pela fresta

da noturna alma 

 

POEMETOS

 

                VI

            P/ Elieser César

Em cada alma

desliza

Indomável barco.

A corda

não amarra

o sussurro das âncoras

 

 

                VIII

Os panos das velas

(anônimos veleiros)

seguem no regaço

das cantigas dos ventos.

 

HAICAIS

 

              9

Oiro partido.

Dez mil nuvens de viés.

Sol no poente.

 

           12

Lagarta na folha

Colorida transmutação

efêmeras asas

 

           13

Na noite espessa
vagalumes encandeiam
as veias das florestas.

 

Raymundo Luiz Lopes – Natural de Salvador. Professor da UEFS – Universidade Estadual de Feira de Santana – e um dos seus fundadores. Editor da Revista Sitientibus/UEFS. Coordenador do Programa Interuniversitário para Distribuição do Livro. Membro da Academia Feirense de Letras e do Instituto Histórico e Geográfico de Feira de Santana. Vice-Presidente da Fundação Carlo Barbosa. Tem vários trabalhos literários publicados em revistas, jornais e via internet. Lançou ‘Gambiarras para o Natal’/conto e ‘ Velas de Arribação’ /poesia. Professor de Tai Chi Chuan. Participa de movimentos culturais e literários.

 

Poemas de Jorge Araújo

 

Munição e víveres

 

(fragmentos)

I

não desvenda, nem deslinda

o poeta inquieta-se ainda

  

III

contígua ferida

a morte

desnomeia a vida

 IV

tempo, espaço, memória

O homem

Será isca da história?

 

V

solidão, se ainda não disse

não  é descobrir-se e só

mas não descobrir-se

  

VIII

ai ai caralho

como viver

dá trabalho

 

(Jorge Araújo)

 

 

 

Poeminha invariável

 

este é o mundo colorido

de todos os circos

todos os horrores

todos os tumores

lindo,lido,visto, ouvido

este é o mundo dolorido

da tv a cores

 

(Jorge Araújo)