Leitura para o fim de semana: Martha Medeiros

 

Martha Medeiros

 

Você conhece um chato. Ou dois. Ou meia-dúzia. E até gosta deles, viraram figuras folclóricas na sua vida. Talvez seja um cunhado, um amigo de um amigo, um colega de trabalho. Os chatos são bem-intencionados, não se pode negar. E é justamente essa boa intenção fora da medida que faz deles… chatos. O chato nada mais é que um exagerado. Ele é prestativo demais, ele é piadista demais, ele leva muito tempo para contar algo que lhe aconteceu, ele fica hooooras no telefone, ele se leva a sério além do razoável, ele ocupa o tempo dos outros com histórias que não são interessantes. O chato é, basicamente, um cara (ou uma mulher) sem timing.

Estava pensando nisso quando escutei alguém citando uma das coisas mais chatas que existe. Tive que concordar: colocar um filho pequeno no telefone pra falar com a dinda, com a vovó, com o titio, é muito chato. A gente ama aquela criança – talvez seja até o nosso filho! – mas ao telefone, esquece. Tentamos entabular um diálogo minimamente inteligível e nada rola. Ou ele não fala nada que se compreenda, ou não abre o bico, e só nos resta ficar idiotizados do outro lado da linha.

Todo mundo sabe que isso é chato. Mas todo mundo que já teve um filho comete essa mesma chatice com os outros. Por quê? Porque pai e mãe de primeira viagem são chatos por natureza. Ninguém escapa. Se não for chato, será considerado um sem-coração. Todos irão apontar: olha lá, aquele ali esconde o filho. Põe ele no telefone!

Outra chatice é mostrar 3.487 fotos do bebê. Dá nos nervos quando o filho não é nosso. Todos os bebês são iguais, menos para seus pais. Seja bem sincero: dá pra aguentar ver foto de bebê pelo celular? Basta perguntar educadamente pra alguém: e seu filhinho, vai bem? Pronto. Num segundo o celular ou iPhone será sacado e apontado direto para seus olhos: veja você mesmo.

A gente sabe que é chato, mas toleramos com sorrisos parcialmente sinceros porque faremos a mesma coisa quando chegar a nossa vez – ou já fizemos um dia. Se você passou dessa fase, segure a onda e compreenda os que ainda não passaram. Nada de reclamar. Aqui se faz, aqui se paga.

Outras chatices? Quando alguém pergunta: lembra de mim? Se está perguntando, é porque a chance é remota. Mas já não fizemos isso diante de alguém que gostaríamos muuuuito que lembrasse? E esticar as letras das palavras quando se está escrevendo? E quando a gente começa uma frase com “adivinha”. Adivinha pra onde eu vou nas próximas férias. Adivinha quem me convidou pra jantar. Adivinha com quem eu sonhei hoje.

Falando em sonho, tem coisa mais chata do que ouvir o sonho dos outros? Mas você já contou os seus. Váááárias vezes.

Agora adivinha qual o próximo exemplo que vou dar (rsrs). Precisamos mesmo colocar risadas entre parênteses para que os outros entendam nossas piadinhas cretinas?

Alguns menos, outros mais, chatos somos todos.

 

Fonte: Jornal “Zero Hora” nº. 16184, 13/12/2

 

Poemas – Raymundo Luiz

 

POÇO

Perder-se.

Ai, perder-se – sim

no próprio mistério do trajeto

das sacudidelas

agônicas.

SEGREDOS

Tudo guardado

no cofre das reminiscências:

oblíquas pontes

flores no cio

latitudes calosas.

Tudo o que já não é o mesmo

e visto pela fresta

da noturna alma.

POEMETOS

                VI

            P/ Elieser César

Em cada alma

desliza

Indomável barco.

A corda

não amarra

o sussurro das âncoras.

 

                VIII

 Os panos das velas

(anônimos veleiros)

seguem no regaço

das cantigas dos ventos.

 

HAICAIS

            9

Oiro parido.

Dez mil nuvens de viés.

Sol no poente.

           12

 Lagarta na folha

Colorida transmutação

efêmeras asas

           13

 Na noite espessa

vagalumes encandeiam

As veias da floresta

João Cabral de Melo Neto

 

O Futebol Brasileiro Evocado da Europa 

                        João Cabral de Melo Neto

A bola não é a inimiga

como o touro, numa corrida;

e embora seja um utensílio

caseiro e que se usa sem risco,

não é o utensílio impessoal,

sempre manso, de gesto usual;

é um utensílio semivivo,

de reações próprias

como bicho,

e que, como bicho, é mister

(mais que bicho, como mulher)

usar com malícia e atenção

dando aos pés astúcias de mão.

 (Do livro Museu de Tudo)

De um jogador brasileiro a um técnico espanhol

                         João Cabral de Melo Neto

 Não é a bola alguma carta

que se leva de casa em casa;

 

é antes telegrama que vai

de onde o atiram ao onde cai.

 

Parado, o brasileiro a faz

ir onde há-de, sem leva e traz;

 

com aritméticas de circo

ele a faz ir onde é preciso;

 

em telegrama, que é sem tempo

ele a faz ir ao mais extremo.

 

Não corre: ele sabe que a bola,

telegrama, mais que corre voa.

(Do livro Agrestes)

 Poemas extraídos de Obras Completas, de João Cabral de Melo Neto, Rio de Janeiro, Nova Aguilar, 1994, págs. 407 e 557.

 

Homenagem ao mago das palavras: José Saramago

 “As palavras são boas. As palavras são más. As palavras ofendem. As palavras pedem desculpa. As palavras queimam. As palavras acariciam. As palavras são dadas, trocadas, oferecidas, vendidas e inventadas. As palavras estão ausentes. Algumas palavras sugam-nos, não nos largam: são como carraças: vêm nos livros, nos jornais, nos «slogans» publicitários, nas legendas dos filmes, nas cartas e nos cartazes.

As palavras aconselham, sugerem, insinuam, ordenam, impõem, segregam, eliminam. São melífluas ou azedas. O mundo gira sobre palavras lubrificadas com óleo de paciência. Os cérebros estão cheios  de palavras que vivem em boa paz com as suas contrárias e inimigas. Por isso as pessoas fazem o contrário do que pensam, julgando pensar o que fazem. Há muitas palavras.”

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O escritor português e Prêmio Nobel de Literatura José Saramago faleceu nesta sexta-feira, por volta das 8h (horário de Brasília) na ilha de Lanzarote, na Espanha. Ele tinha 87 anos e estava em casa, na companhia da mulher, Pilar Del Río.

José Saramago é considerado um dos mais importantes escritores contemporâneos, autor de obras de sucesso em todo o mundo, como “O evangelho segundo Jesus Cristo”, “A jangada de pedra” e “Memorial do convento”.

Sua obra “Ensaio sobre a cegueira” foi levada aos cinemas pelo brasileiro Fernando Meirelles e o filme se tornou um sucesso mundial. Em 1998, sua prosa inventiva, a estética rigorosa e a constante preocupação social o fizeram merecer o Prêmio Nobel de Literatura.

Retratos de Mulheres – Resenha

 

                                           Por Socorro Pitombo*

Mulher, um tema recorrente, mas sempre muito instigante, revelador, inesgotável. Quanto mais nos debruçamos sobre o feminino, mais mulheres encontramos.  Extraordinárias, com trajetórias singulares. Algumas fortes, outras nem tanto, sofredoras, gloriosas ou detestáveis, mas interessantes. Muitas relegadas ao esquecimento.

Há séculos o ser humano se pergunta, e até hoje não há uma resposta clara, por que as sociedades ainda diferenciam tanto os dois sexos em termos de hierarquia e funções. Na realidade, apesar dos avanços e conquistas, a mulher ainda é discriminada em muitas situações. É o caso de perguntarmos: como se estabeleceram as hierarquias, como isso aconteceu e se sempre foi assim.

O filósofo alemão Friedrich Engels já sustentava que a sujeição da mulher começou com a família e a propriedade privada, quando os humanos se assentaram em povoados. Antes, na vida nômade, o homem caçava, protegia. A mulher paria, amamentava, criava. E essa assombrosa capacidade deve tê-la tornado muito poderosa. Talvez, quem sabe, a ânsia de controle dos homens tenha nascido desse medo. Do medo do poder inquestionável das mulheres.

Essas e outras questões estão contidas no livro “Histórias de Mulheres”, da espanhola Rosa Montero, considerada a escritora do momento. Rosa traça o perfil de quinze mulheres extraordinárias, que tiveram a coragem de se afastar das normas estabelecidas e de trazer à tona as mudas aflições de suas épocas.

A Fugitiva

Uma das biografadas é a escritora Agatha Christie, a “Rainha do Crime” como ficou conhecida pelos seus romances policiais. Apesar de famosa – seus livros foram lidos em todo o mundo – era perseguida por um monstro interior. Sua existência foi marcada por aflições, uma eterna fuga do negror, um combate secreto contra o caos.

Para ela, era importante que o mundo fosse ordenado, correto, tudo em seu devido lugar: o universo de sua infância.  Preocupava-se com a aparência, embora a sua própria não fosse das mais agradáveis. Aos 40 anos começou a engordar e transformou – se numa matrona, de seios fartos e quadris avantajados. Os dentes eram ruins e, por isso mesmo, nunca aparecia sorrindo nas fotografias.

Embora não seja mencionado em sua autobiografia, o desaparecimento da escritora provocou especulações de toda ordem.  À essa época já era famosa. Não é difícil imaginar o impacto que causou, desaparecer assim, misteriosamente, sem deixar nenhuma pista. Ao final de onze dias Agatha foi encontrada, bem instalada em um hotel.  Não se lembrava de nada. Tinha perdido completamente a memória, fugido de si mesma. Mais tarde, com ajuda psiquiátrica, foi reconstruindo as lembranças. Mas nunca se referiu a esse episódio.

Com Archie Christie, seu primeiro marido, viveu tempos de aventura. Durante um ano viajou com ele para dar a volta ao mundo. Agatha, que sempre procurou ser a esposa ideal, viu aos poucos a sua relação cair por terra. Archie se interessou por outra mulher e a separação foi inevitável. O que na época era impensável. Muito menos para ela, que gostava de tudo certinho, no seu devido lugar, mesmo que para isso tivesse que fingir para si mesma. Porque Agatha passou a vida ocultando coisas, dissimulando defeitos. Foi, sem dúvida, uma grande farsante, uma impostora, no bom sentido.

A esquecida

Jovem, inteligente, talentosa, escultora de gênio. Assim era Camile Claudel, outra mulher “fotografada” por Rosa Montero. Tinha tudo para triunfar, mas acabou sucumbindo, vítima das convenções e dos preconceitos da época. Francesa de Villeneuve começou a esculpir ainda criança, por conta própria. Aos 12 anos produziu um trabalho em argila que chamou a atenção dos artistas locais.

Chegou a Paris aos 19 anos, em 1881. Nessa época às mulheres era vedado o direito de estudar na Escola de Belas Artes.  Mas a destemida  Camile não se acovardou, se matriculou numa academia e alugou um estúdio com três jovens escultoras inglesas. As poucas moças que saíam das normas eram consideradas quase prostitutas. Conheceu Auguste Rodin, ele com 44 anos de idade e ela 19. Tinha plena consciência de que era genial e queria conquistar o mundo. Seu grande pecado foi ter-se apaixonado perdidamente pelo celebérrimo mestre. Casado há 20 anos, Rodin não abriu mão da estabilidade familiar e a aprendiz foi relegada a segundo plano, ao semiclandestino lugar de amante. Apaixonada e envolvida por um homem muito mais velho, admirado, cortejado, Camile se submeteu e pagou caro por isso. A sociedade não lhe perdoou.

São muitas as controvérsias sobre a vida tumultuada de Camile Claudel, sobretudo sobre a sua relação amorosa e profissional com Rodin. Trabalhava, apaixonada e incansavelmente, mas pouco assinou as suas obras. Também lhe serviu de modelo, ocupação que lhe consumia horas de dedicação e não se sabe ao certo se era remunerada.

Há quem diga que muitas obras assinadas por Rodin tenham sido esculpidas por Camile, pois trazem a marca do seu estilo: audacioso, inovador. Produziram muitos trabalhos em conjunto. Mas quem aparecia era o grande escultor, sempre festejado.  Embora igualmente genial, ela não teve o seu talento reconhecido. A sombra do mestre a esmagou.

Conservadoras, a imprensa e a sociedade não aceitavam suas esculturas arrojadas. Alguns críticos importantes chegaram a reconhecer a sua genialidade. Mas não o suficiente para consagrá-la como artista.   Enquanto isso, Rodin triunfava com obras mais transgressoras que as de Camile. Talvez inspiradas na criatividade e no talento da aluna dedicada. Afinal, não se sabe quem copiou quem. Mas não há dúvida de que ele a usou, tanto como mulher quanto como artista. Prova disso é que a década em que estiveram juntos foi a mais efervescente e produtiva para o escultor.

Camile rompeu com Rodin e a partir de então, em seu próprio estúdio, tentou manter-se a si mesma. As suas obras não vendiam, o que a levou progressivamente ao empobrecimento. Acabou desequilibrada. Tinha alucinações, mania de perseguição. Toda a sua revolta voltou-se contra Rodin.

No manicômio para onde foi levada, por ordem da própria mãe, não recebia visitas, exceto a do irmão Paul, que algumas raras vezes esteve  com ela. Na verdade, Camile foi punida pela família e pela sociedade por transgredir. Por tentar viver da sua arte e amar sem restrições, enfim, ser dona da sua própria vida. Não conseguiu. Apesar das suas comovedoras súplicas, permaneceu 30 anos internada. Morreu no manicômio de Montdevergues em 1943.

A autora

Rosa Montero é uma escritora ainda jovem, mas com uma obra madura. Nasceu em Madrid, em 1951. Frequentou a Faculdade de Filosofia e Letras e desde 1976 é colunista exclusiva do Jornal El País. A série de artigos reunidos no livro Histórias de Mulheres (2008) foi publicada oportunamente em El País Semanal e aparece numa versão ampliada, libertada da ditadura do espaço. É autora de diversos livros, dentre os quais Te trataré como a una reina (1983) e El Corazón Del Tártaro (2001, além dos já publicados no Brasil pela Ediouro: A Louca da Casa (2004), que recebeu o prêmio Grinzane Cavour de literatura estrangeira e o prêmio Qué Leer de melhor livro espanhol – Paixões (2005), História do Rei Transparente (2006) e A Filha do Canibal (2007), prêmio Primavera de melhor romance.

As biografadas

Agatha Christie – Camile Claudel – Frida Kahlo – Simone de Beauvoir – Charlotte, Emily, e Anne Brontë – George Sand – Margaret Mead,- Isabelle Eberhardt – Laura Riding- Maria Lejárraga – Alma Malher – Lady Ottoline Morrel – Zenóbia Camprubi-  Mary Wollstonecraft – Aurora e Hildegart Rodriguez.

* Socorro Pitombo é jornalista e colaboradora do Blog.