Um poema de Hilda Hilst

 

***

Lobos? São muitos.

Mas tu podes ainda

A palavra na língua

Aquietá-los.

Mortos? O mundo.

Mas podes acordá-lo

Sortilégio de vida

Na palavra escrita.

Lúcidos? São poucos.

Mas se farão milhares

Se à lucidez dos poucos

Te juntares.

Raros? Teus preclaros amigos.

E tu mesmo, raro.

Se nas coisas que digo

Acreditares.

 Hilda Hilst – Júbilo Memória Noviciado da Paixão (1974) – Poemas aos Homens do nosso Tempo – VIII)

Adélia Prado – Com licença poética


Quando nasci um anjo esbelto,
desses que tocam trombeta, anunciou:
vai carregar bandeira.
Cargo muito pesado pra mulher,
esta espécie ainda envergonhada.
Aceito os subterfúgios que me cabem,
sem precisar mentir.
Não sou feia que não possa casar,
acho o Rio de Janeiro uma beleza e
ora sim, ora não, creio em parto sem dor.
Mas o que sinto escrevo.  Cumpro a sina.
Inauguro linhagens, fundo reinos
— dor não é amargura.
Minha tristeza não tem pedigree,
já a minha vontade de alegria,
sua raiz vai ao meu mil avô.
Vai ser coxo na vida é maldição pra homem.
Mulher é desdobrável. Eu sou.

                                                            Adélia Prado

 

Adélia Luzia Prado Freitas nasceu em Divinópolis, Minas Gerais, no dia 13 de dezembro de 1935; a poetisa escreveu seus primeiros versos aos 15 anos de idade, logo após a morte de sua mãe. Em 1953, terminou o curso de Magistério. Antes do nascimento da última filha, a escritora iniciou o curso de Filosofia.

O seu primeiro livro publicado foi Bagagem. Em seguida publicou “O coração disparado”, que foi agraciado com o Prêmio Jabuti, da Câmara Brasileira do Livro, “Terra de Santa Cruz”, “Os componentes da banda”, “Manuscritos de Felipa”, outros de prosa e poesia, e o mais recente, “Oráculos de maio”. Vários textos de suas obras serviram de base para a peça “Dona doida: um interlúdio”, estrelada pela atriz Fernanda Montenegro. Recentemente lançou o CD “O Tom de Adélia Prado”, onde recita versos de seu último livro

Brinde – Antônio Brasileiro

 

         BRINDE

                  Antônio Brasileiro

Se a mente, que não é nada, mantém-se quieta

e as vozes do remorso não persistem,

eis o momento de desvendar enigmas,

de relembrar caminhos

e de tomar uns chopes com os amigos.

Pois se a mente, que não é nada, está quieta

– os enigmas mais crus, domesticados –

e o passado é um pássaro em nossa mão,

eis que o homem conhece a perfeição.

E como tudo passa tão rapidamente,

é bom brindar essas coisas com amigos.

 

 

Dois poemas de Carlos Barbosa

  

O ESPELHO 

de repente

soube

         ler nuvens

         ouvir pedras

         cantar silêncios

         sentir doçuras em farpas

de repente

não soube mais

         o caminho da pia

         o sentido das placas

         ligar a luz

         esperar

         rir

 de repente

nada mais acontecia

tudo era um só espelho

e nele você me ardia

               Carlos Barbosa

 

CENA DE RUA

 À moda de Manuel Bandeira

dez horas da manhã

 um homem arrasta-se na calçada

em frente ao prédio da reitoria

de cócoras

defeca

 limpa-se com a mão direita

que esfrega em seguida numa poça d’água

 no instante seguinte

o sinal abre para os carros

que fecham a cortina

do breve humano espetáculo

               Carlos Barbosa