Um poema de Luís Pimentel

Partilha

“Se havia acordo, não me recordo…/

Havia choro atrás da porta,”

Ivan Junqueira

 

Quem haverá de ficar

com o que ficou do homem,

nesta noite incerta, insone,

entre farpas, labaredas?

Quem ficará com o pássaro,

o cão, o gato, as feridas?

Ninguém, pois há custo, em vida,

demanda tempo e cansaço.

Será mais fácil encontrar

quem aceite, de bom grado,

a casa, o carro, o arado,

a mão, o braço, o antebraço.

Sua vara de pescar

não tem qualquer serventia.

Só o peixe, na bacia,

limpo, servil, temperado,

tudo o que venha pescado,

que não cobre sacrifícios.

Não se aceita o ofício;

só o que ele propicia.

Que acordo será possível,

no dia da crua partilha?

Sete botões de braguilha,

sete palmos, sete mares?

Para chorar os azares

estarão todos unidos:

o que não foi repartido,

não soma, é pó, inexiste.

Que o homem não fique triste,

na alma, nenhum remorso.

O peito, vísceras, seus ossos

estarão bem repartidos.

                        (Luís Pimentel)

Manuel Bandeira e a festa de São João

 

Profundamente

Quando ontem adormeci
Na noite de São João
Havia alegria e rumor
Vozes cantigas e risos
Ao pé das fogueiras acesas.
No meio da noite despertei
Não ouvi mais vozes nem risos
Apenas balões
Passavam errantes
Silenciosamente
Apenas de vez em quando
O ruído de um bonde
Cortava o silêncio
Como um túnel.
Onde estavam os que há pouco
Dançavam
Cantavam
E riam
Ao pé das fogueiras acesas?

— Estavam todos dormindo
Estavam todos deitados
Dormindo
Profundamente.

Quando eu tinha seis anos
Não pude ver o fim da festa de São João
Porque adormeci.

Hoje não ouço mais as vozes daquele tempo
Minha avó
Meu avô
Totônio Rodrigues
Tomásia
Rosa
Onde estão todos eles?
— Estão todos dormindo
Estão todos deitados
Dormindo
Profundamente.
(Manuel Bandeira)

Um poema cantado

Dentro de mim mora um anjo

                                                (Sueli Costa/Cacaso)

Quem me vê assim cantando
Não sabe nada de mim

Dentro de mim mora um anjo
Que tem a boca pintada
Que tem as unhas pintadas
Que tem as asas pintadas
Que passa horas à fio

No espelho do toucador
Dentro de mim mora um anjo
Que me sufoca de amor

Dentro de mim mora um anjo
Montado sobre um cavalo
Que ele sangra de espora
Ele é meu lado de dentro
Eu sou seu lado de fora

 

Quem me vê assim cantando
Não sabe nada de mim
Dentro de mim mora um anjo
Que arrasta suas medalhas
E que batuca pandeiro
Que me prendeu em seus laços
Mas que é meu prisioneiro
Acho que é colombina
Acho que é bailarina
Acho que é brasileiro

 

Quem me vê assim cantando
Não sabe nada de mim

 

A arte de Graça Ramos e poemas de Damário Dacruz

A artista plástica Graça Ramos no Pouso da Palavra, em Cachoeira, pintando o retrato do seu amigo Damário Dacruz.

A foto é de George Lima e foi gentilmente disponibilizada pelo mesmo para ilustrar o post em homenagem ao saudoso Poeta.

Todo risco

A possibilidade de arriscar
É que nos faz homens
Vôo perfeito
no espaço que criamos
Ninguém decide
sobre os passos que evitamos
Certeza
de que não somos pássaros
e que voamos
Tristeza
de que não vamos
por medo dos caminhos.

Anzol

Angustiado olhar
do peixe capturado.
Angustiado olhar
do peixe
na mesa do mercado.
O amor, às vezes,
tem esse olhar
de quem vacila prisioneiro
quando tudo é mar.

Outros jardins  

Borboletas
são flores
que decidiram
ganhar o mundo.

 

 Insistência

Os amores impossíveis
sabem dos seu destinos.
Os amores impossíveis
insistem como beija-flores
na busca incessante
do néctar invisível.
Os amores impossíveis
estão sempre fora da rota
mas acreditam que chegarão

Caixa – preta

Sou um homem.
Portanto,
mais que palavra.

Não pronuncio
o sentimento
apenas como palavra.

O que foi dito
ao entardecer
não se confirma
na madrugada.
O que foi visto
no sonho
não se confronta
com a realidade.

Sou um homem.
Portanto,
uma surpresa.
tristeza
de que não vamos
por medo do caminho.

In Segredo das Pipas, Salvador: EPP/ BANCO CAPITAL, 2003.

 

Grande Finale

 Avise aos amigos

que preparo o último verso.

A vida

dura menos que um poema

e no alvorecer mais próximo

saio de cena.”

                    (Último poema de Damário Dacruz) 

 

 

Um poema de Florbela Espanca

 

VAIDADE

Sonho  que sou a Poetisa eleita,

Aquela que diz tudo e tudo sabe,

Que tem a inspiração pura e perfeita,

Que reúne num verso a imensidade!

Sonho que um verso meu tem claridade

Para encher todo o mundo! E que deleita

Mesmo aqueles que morrem de saudade!

Mesmo os de alma profunda e insatisfeita!

Sonho que sou Alguém cá neste mundo…

Aquela de saber vasto e profundo,

Aos pés de quem a terra anda curvada!

E quando mais no céu eu vou sonhando,

E quando mais no alto ando voando,

Acordo do meu sonho… E não sou nada! …

                    (Florbela Espanca)