As verdades de Martha Medeiros

 

Gente Fina

 

“Gente fina é que tinha que virar tendência. Porque, colocando na balança, é quem faz a diferença.”

Martha Medeiros

 

Gente fina é politicamente correta? Se for, não sou gente fina, porque fico muito impaciente com certas cortesias exageradas. Por exemplo, outro dia estava no aeroporto e uma  voz no alto-falante convidou a embarcar os passageiros da melhor idade. Se eu tivesse cem anos, entenderia que todos deveriam passar na minha frente. Que melhor idade? Claro que alguém pode estar mais satisfeito aos 80 anos do que quando tinha 40, mas isso é levar em conta o específico. Na hora de generalizar, sejamos menos franciscanos. Milhares de pessoas idosas têm a cabeça ótima e estão realizadas, mas se tiverem bom humor, vão dispensar o consolo: pô, melhor idade é provocação.

 O mesmo sobre magros e gordos. Cada um faz o que bem entender com o próprio corpo. Comer com liberdade é um direito e ninguém tem que se sacrificar para atender a um padrão estético, mas que ser magro é melhor do que ser gordo, é.

Pra saúde é melhor, pra se vestir é melhor, pra se locomover é melhor, pra dançar é melhor. Não quer dizer que um gordo não seja feliz. Geralmente, são felizes à beça, mais do que muito varapau.

 Mas se fosse possível escolher entre ser magro e ser gordo sem nenhum efeito colateral de felicidade ou infelicidade, sem nenhum esforço, só  abracadabra, todo mundo iria querer ser magro, assim como todo mundo preferiria se cristalizar entre os 30 e os 50 anos. Eu acho. A não ser que eu esteja louca, o que é uma hipótese a considerar.

Porém, melhor que tudo é ser gente fina. Finíssima. Isso nada tem a ver com a tendência atual de ser seca, de parecer um esqueleto  ambulante. Gente fina é outra coisa.

Gente fina é aquela que é tão especial que a gente nem percebe se é gorda, magra, velha, moça, loira, morena, alta ou baixa. Ela é gente fina, ou seja, está acima de qualquer classificação. Todos a querem  por perto. Tem um astral leve, mas sabe aprofundar as questões quando necessário. É simpática, mas não bobalhona. É uma pessoa direita, mas não escravizada pelos certos e errados: sabe transgredir sem agredir.

Gente fina é aquela que é generosa, mas não banana. Te ajuda, mas permite que você cresça sozinho. Gente fina diz mais sim do que não, e faz isso naturalmente, não é para agradar. Gente fina se sente  confortável em qualquer ambiente: num boteco de beira de estrada e num  castelo no interior da Escócia.

Gente fina não julga ninguém – tem opinião, apenas. Um novo começo de era, com gente fina, elegante e sincera. O que mais se pode querer?

Gente fina não esnoba, não humilha, não trapaceia, não compete e, como o próprio nome diz, não engrossa. Não veio ao mundo pra colocar areia no projeto dos outros. Ela não pesa, mesmo sendo gorda, e não é leviana, mesmo sendo magra.

Gente fina é que tinha que virar tendência. Porque, colocando na balança, é quem faz a diferença.

 

   Fonte: Jornal “Zero Hora” nº. 15763, 19/10/2008

 

 

Poemas de Jorge Araújo

 

Munição e víveres

 

(fragmentos)

I

não desvenda, nem deslinda

o poeta inquieta-se ainda

  

III

contígua ferida

a morte

desnomeia a vida

 IV

tempo, espaço, memória

O homem

Será isca da história?

 

V

solidão, se ainda não disse

não  é descobrir-se e só

mas não descobrir-se

  

VIII

ai ai caralho

como viver

dá trabalho

 

(Jorge Araújo)

 

 

 

Poeminha invariável

 

este é o mundo colorido

de todos os circos

todos os horrores

todos os tumores

lindo,lido,visto, ouvido

este é o mundo dolorido

da tv a cores

 

(Jorge Araújo)

 

Duas histórias de meninos – Luís Pimentel

 

  

Boniteza

 

A menina ficou olhando a mãe, enquanto ela espremia laranja, cortava o mamão, colocava a fatia de pão na torradeira e despejava pó de café no coador.

A mãe andava de um lado para o outro, entre a copa e a cozinha, a mesa e o fogão. A menina acompanhava com os olhos cada passo da mãe. A mãe percebeu e perguntou por que você me olha tanto, minha filha? Está me achando bonita?

A menina respondeu que sim e quis saber:

– Será que um dia vou ser tão bonita quanto você?

– Você já é bonita, meu amor. Você é linda – disse a mãe, dando um beijo na testa da menina e levantando com os dedos os fios de sua franja.

A menina bebeu suco, comeu mamão, tomou café com pão, colocou a mochila da escola nas costas e, antes de sair, parou diante da porta:

– Sou bonita mesmo?

– A mais bonita que eu conheço.

– Que bom. Vou dizer isto ao Serginho, um menino bobo que está me esnobando.

  

Alecrim

 O menino seguia com o cachorro, conduzindo-o por uma coleirinha improvisada de corda, e o homem que estava parado na esquina quis saber:

De quem é esse cachorro?

– É meu – respondeu o menino.

– Como é o nome dele?

– Alecrim.

– Isso não é nome de cachorro.

– Não?

– Não. Nome de cachorro é Rex, Guerreiro, Tupy… Alecrim é nome de tempero.

– Lá é casa é nome de cachorro…

– Está bem. Que idade tem ele?

– É novo. Tem a minha idade.

– Sei. Você empresta para eu dar umas voltas?

– Não.

– Eu sempre  quis passear com um cachorro. Eu te empresto a minha bicicleta.

– De jeito nenhum.

– Tem medo de eu não devolver? Se eu sumir com ele, você fica com a bicicleta. É bem mais nova do que o Alecrim.

– Pode até ser. Mas ela não lambe o meu pé.

 Para ler mais sobre Luís Pimentel, clique aqui.

  

Um poema de Myriam Fraga

 

Banquete

O vinho
que  eu bebo
é  o preço
de  um  homem.

O prato que eu como,
sem  fome,
é  o salário
da  fome
de  um homem.

Mas,

o sonho que eu travo
com  fúria nos dentes

é  somente a metade
do sonho
de um homem.

 

 

  

 Myriam Fraga nasceu em Salvador, Bahia, em 09 de novembro de 1937. É membro da Academia de Letras da Bahia desde 1985 e dirige a Fundação Casa de Jorge Amado. A sua carreira literária teve início no final dos  anos 50, quando intelectuais da época, que frequentavam a Universidade, a Escola de Teatro e a Casa de Cultura localizada no bairro do Canela, se reuniam para trocar, ideias e escritos. O seu primeiro livro foi lançado em 1964, pela editora Macunaíma, criada por Glauber Rocha, Calazans Neto, Fernando da Rocha Perez e Paulo Gil Soares, com o objetivo de publicar as produções literárias dessa geração. 

Obra:

Poesia: Marinhas, Ed. Macunaíma, 1964, Bahia; Sesmaria, Ed. Imprensa Oficial da Bahia, prêmio Arthur Salles, 1969, Bahia; O livro dos Adynata, Ed. Macunaíma, 1975, Bahia. O Risco na Pele, Ed. Civilização Brasileira, 1979, Rio de Janeiro; A Cidade, Ed. Macunaíma, 1979, Bahia ; As Purificações ou o Sinal do Talião, Ed. Civilização Brasileira, 1981, Rio de Janeiro; A Lenda do Pássaro que Roubou o Fogo (Disco/Livro com música de Carlos Pita e monotipias de Calasans Neto), Ed. Macunaíma, 1983, Bahia; Six Poems: Tradução de Richard O’Connell, Ed. Macunaíma, 1985, Bahia.; Os Deuses Lares, Ed. Macunaíma, 1992, Bahia; Die Stadt, Ed. Macunaíma, 1994, Bahia; FEMINA, Salvador: Fundação Casa de Jorge Amado/Copene, 1996.

Prosa:  Flor do Sertão, Salvador, Ed. Macunaíma, 1986, Bahia

Antologias: Cinco Poetas, Ed. Macunaíma, 1966, Bahia; Antologia da Moderna Poesia Baiana, Ed. Tempo Brasileiro, 1967, Rio de Janeiro; 25 Poetas da Bahia, Ed. DESC, 1968, Bahia; Sete Cantares de Amigos, Ed. Arpoador, 1975, Bahia; Antologia de Poetas da Bahia, em alfabeto Braille (Ed. Fundação Cultural do Estado da Bahia, 1976, Bahia; Serial, 1978, Bahia; Em Carne Viva, Ed. Anima, 1984, São Paulo; Poetas Contemporâneos, Ed. Roswitha Kempf, 1985, São Paulo; Simulations Selected Translations, Ed. Atlantis, 1983, Estados Unidos; Sincretismo, a Poesia da Geração 60, Ed. Topboo