O homem bom e o vestido de flores

  

Um conto de Luís Pimentel

– Primeiro mesmo, de fazer as coisas para valer, foi o Toni. Eu até tive alguns namoradinhos antes dele,  sim. Coisa de criança, sem compromisso e sem deixar marcas profundas. Foi mais ou menos nessa época que o estraga-prazeres do meu primo se infiltrou em minha vida. Chamava-se Lourival e não serviu para nada. Pequeno e inseguro, porém pretensioso. Só falava em dinheiro, futebol e corridas de cavalo. Curto que só vendo. Uma besta.

“Ela jamais saberá, mas eu gostaria muito de conhecer o primo Lourival. Gosto de pessoas assim, que não servem para nada. Também gosto de pessoas que só falam em dinheiro, sobretudo quando não têm dinheiro nenhum. E gosto, sobretudo, dessas pessoas que as outras consideram verdadeiras bestas.”

– Coitado do Lourival.

– Coitado nada.

– Tá certa. Não chega aos pés do Toni.

– Também não posso dizer que o Toni tenha representado grande coisa. Não me deu nada, mas pelo menos tirou o que tinha se prontificado a tirar.

– Alguém tem que fazer o trabalho sujo.

– Eu já tinha quase dezoito anos. Passava da hora.

– Parabéns, Toni.

     “Eu tinha quase dezoito anos quando fui para a cama com uma mulher. Uma prostituta, como não poderia deixar de ser. Criado em roça, meio do mato, a iniciação se deu mesmo foi com cabras, porcas, novilhas, éguas, cadelas e companhia. Só mais tarde, na cidade, conheci fêmeas de duas pernas, dois braços e dois peitos. Não conseguia me entender com namoradas, sempre difíceis e certinhas. Tinha que ser mesmo com mulheres de vida torta e nenhuma complicação existencial. Dizia apenas conta aí a bela história e não se preocupa comigo, baby. Elas obedeciam, sem remorsos.”

– Aí veio o Jonas.

– Grande Jonas.

– O grande amor de minha vida. Dessa história você vai gostar.

“Gosto das histórias delas. De todas as histórias de todas elas. Quanto mais absurdas, mais eu gosto. Às vezes me dão vontade de rir, mas em geral me dão muito prazer.”

– Como era o Jonas?

– Forte, inteligente, extremamente sensual e educado. Gostava de fazer amor na sala, no velho sofá, enquanto mamãe ouvia rádio e passava roupas na cozinha. Dizia que o excitava, tinha cada idéia de maluco. A qualquer movimento suspeito na cozinha acelerava o ritmo. E como eu gostava.

– Também estou gostando.

– Me mordia toda. Jonas tinha coxas grossas e braços firmes. Mexia com contrabando e um dia evaporou, sumiu do mapa, desapareceu no mundo.

“Lurdes. Era esse o nome dela. Tinha peitos caídos e um sorriso horroroso, forrado de dentes de ouro. Exagerava na pintura e parecia mais uma caricatura malfeita. Cobrava menos do que as outras e tinha histórias interessantíssimas, além de não me considerar um alucinado. Foi compreensiva quando eu disse que gostaria de fazer amor ouvindo histórias malucas. Aceitou de pronto, sem cobrar um tostão a mais. Tentamos muitas vezes até eu ter certeza de que gostaria de fazer sozinho, ouvindo mentiras cabeludas.”

– Fale mais.

– Do sumiço do Jonas?

– Da cama, do sofá, mordendo você todinha.

– Você não presta.

 “Eu não presto, nem te amo, não sei nem quero saber o teu nome. Não quero saber dos teus problemas, só das tuas mentiras.”

– Repete tudo. O que ele fazia com você no velho sofá, enquanto a mamãe passava roupas?

– Me beijava dos pés à cabeça. Fazia tudo o que queria comigo.

– Grande Jonas. Fazia tudo, tudinho?

– As coisas que me envergonhavam fazíamos de luz apagada. Chega, não gosto nem de lembrar.

– Esquece.

– Aí conheci o Rodolfo.

– Também contrabandista?

– Não. Motorista de ônibus.

– Rodolfo é um bonito nome.

– De artista. A mãe era apaixonada por um tal de Rodolfo Valentino, do cinema. Só que não se parecia nada com o outro. O meu Rodolfo era magro, desdentado e tossia até não se agüentar, principalmente naquela hora.

– Que horror.

– Fica quietinho, senão desconcentra.

 “A vida é assim, feita de pequenas crueldades.”

– Gostava dele?

– Não. Usava como remédio barato, só para tentar esquecer o Jonas. Ia para a cama com ele pensando no Jonas, enquanto ouvia coisas. Sempre desatenta.

– Que coisas?

– Coisas, ora. Coisas que se dizem na cama.

 “A vida também é feita de pequenas coisas. Coisas sem sentido, coisas importantes, coisas e coisas. Coisas que se dizem na cama, que se cochicham em enterros, outras que só em comemorações de aniversários. Coisas que só se dizem aos grandes amigos e coisas que não se diz nem aos piores inimigos.”

– E você, o que dizia para ele?

– Coisas também. Bobagens. E cravava as unhas nas costas cheias de espinhas do pobre. Acabou?

– Não. Mas não demora.

– Então vou falar do Júlio.

– O que tinha o Júlio?

– Um olho cego e uma mancha enorme do lado direito  do peito.

– Também gostava no sofá?

– Não. De pé, encostado na parede. Ele era muito alto e eu tinha que ficar na ponta dos pés. Mas era bom.

– Sei.

– Era muito bom.

 “Não duvido. Todos eles são muito bons para elas e também para mim. Também não tenho queixas das mulheres com as quais sonhei. Todas são boas e não têm culpa de nada.”

– Viu onde coloquei minhas chaves?

– Em cima da mesinha de cabeceira. Nem falei do Alfredo, o que era da polícia.

– Da próxima vez começaremos por ele.

– Você promete?

– Claro. Temos que começar por alguém.

– Jura que gostou?

– Eu gosto sempre. Tome.

– Pode deixar aí.

– Está em cima da cômoda. Tem um pouco mais, para o vestido de flores.

– Não acredito. Enfim, o vestido de flores. Que homem bom, meu Deus.

“Olho para ela e penso: ainda existem pessoas boas neste mundo.”

 

 

Um poema de Luís Pimentel

Partilha

“Se havia acordo, não me recordo…/

Havia choro atrás da porta,”

Ivan Junqueira

 

Quem haverá de ficar

com o que ficou do homem,

nesta noite incerta, insone,

entre farpas, labaredas?

Quem ficará com o pássaro,

o cão, o gato, as feridas?

Ninguém, pois há custo, em vida,

demanda tempo e cansaço.

Será mais fácil encontrar

quem aceite, de bom grado,

a casa, o carro, o arado,

a mão, o braço, o antebraço.

Sua vara de pescar

não tem qualquer serventia.

Só o peixe, na bacia,

limpo, servil, temperado,

tudo o que venha pescado,

que não cobre sacrifícios.

Não se aceita o ofício;

só o que ele propicia.

Que acordo será possível,

no dia da crua partilha?

Sete botões de braguilha,

sete palmos, sete mares?

Para chorar os azares

estarão todos unidos:

o que não foi repartido,

não soma, é pó, inexiste.

Que o homem não fique triste,

na alma, nenhum remorso.

O peito, vísceras, seus ossos

estarão bem repartidos.

                        (Luís Pimentel)

Um poeta: Luís Pimentel

EU E ELA

Ela cuspiu nos meus sonhos

não reagi

              acordei.

Xingou mamãe de jamanta

fui até bom

              concordei.

Disse que eu era uma besta

compreendi

              mas chorei.

Gritou que tinha outro homem

fui imbecil

              duvidei

Provou que eu não existia

não discuti

              me matei

 

CANTO MENOR

           Para Antônio Brasileiro

 Eu que recitava

ser maior que o mundo,

hoje me concentro:

sou menor que a água.

Só que menos clara,

só que menos calma,

só que menos

e só.

       (Luiz Pimentel)

 

Luís Pimentel nasceu no sertão baiano, em 1953 entre Itiúba e Gavião. Mas, dizem as más línguas que ele é natural de Feira de Santana; talvez o seja, por afinidade e pelos amigos que tem ali. Jornalista radicado no Rio de Janeiro trabalhou em diversas redações de jornais e revistas locais, dentre eles, os jornais Última e Hora e Jornal do Brasil. Dirigiu e editou a revista Música Brasileira, publicação dedicada à memória e aos lançamentos da MPB. Fez parte de dois periódicos lançados por Ziraldo – Bundas e O Pasquim21. É autor de mais de 20 livros de poesia e  prosa. Atualmente é colunista de O Dia. Como escritor recebeu importantes prêmios por sua vasta e variada obra.

Obras do autor:

Aquele beijo que eu te dei (contos e crônicas, Ed. Antares, 1985); As miudezas da velha (Prêmio Jorge de Lima de Poesia, Ed. Clima, 1990. 2º Edição: Myrrha, 2003); Um cometa cravado em tua coxa – contos (Editora Record, 2003); Entre sem bater – Humor na imprensa, do Barão de Itararé ao Pasquim21 (Ediouro, 2004); O calcanhar da memória – Poesia (Bertrand Brasil, 2004); Declarações de humor (textos humorísticos, Fivestar, 2006. 1ª edição: Ed. Gavião, 1994); Com esses eu vou – de A a Z, crônicas e perfis da MPB (Editora ZIT, 2006); Contos escolhidos (Fundação Cultural da Bahia, 2006); Cabelos molhados (Contos. Ministério da Educação e Cultura, 2006); Noites de sábado e outras crônicas cariocas (Editora Leitura, 2007); Grande homem mais ou menos – contos (Bertrand Brasil, 2007; Fundação Catarinense de Cultura, Prêmio Cruz e Souza 2002)

 Para o público infanto-juvenil : O bravo soldado meu avô (Ed. Antares; 1984; Ediouro, 1995); Um menino chamado Asterisco (Globo, 1985; José Olympio, 1993); Hora do recreio (Antares, 1985; 2ª Edição, Myrrha, 2004); O ritmo da centopéia (Globo, 1986); Uma noite a coruja (Antares, 1986); Meninos de roça, cantigas de roda (Globo, 1987). Bié doente do pé  (Ao Livro Técnico); A fuga do cavalinho vermelho (José Olympio, 1989); Bié e a grande viagem (Ao Livro Técnico, 1992); Uma vez uma avó (Editora Lê, 1992); Bicho solto (Ed. Do Brasil, 1992); As roupas do papai foram embora (Ed. Record, 1992); A revolta dos dedos (Ao Livro Técnico, 1993); O chapéu de quatro pontas (Ao Livro Técnico, 1993); História do Bode Zé Pilão (Ao Livro Técnico, 1993); O peixinho do São Francisco (Agir, 1994); A gente precisa conversar (Ed. Lê, 1995); Incrível tribo pé-no-traseiro (Ao Livro Técnico, 1996); Barbas de molho (Ed. Dimensão, 1998); Sem essa de guerra (Ed. Coqueiro, 2003); O mosquito elétrico (Myrrha, 2004); Cantigas de ninar homem (Bertrand Brasil, 2005); Todas as cores do mar (Global Editora, 2007); Luiz Gonzaga (Moderna, 2007).