Hera uma vez, em Paris

 Foto: Simone Carneiro

Leni David

 

Uma foto antiga, um fragmento de uma canção qualquer, palavras rabiscadas à margem de um livro têm a força de nos transportar para outras épocas, para outros lugares, além de despertar momentos que ficariam para sempre na penumbra do inconsciente. Quantas vezes momentos únicos foram revividos graças aos guardados engavetados, por acaso, ou por querer? Quantas vezes tivemos o privilégio de (re)visitar o passado graças a um minúsculo flagrante recuperado pela audição, pelo olfato ou pela visão? Os sentidos são antenas que captam fragmentos da realidade e têm o poder de nos conduzir pelos labirintos da memória e de avivar em cores definidas, a imagem de um lugar, de um tempo adormecido, de coisas e pessoas que povoaram a nossa trajetória.

Folheando uma antiga revista Hera, (re)visitei um tempo de vôos destemidos, de esperas e expectativas, tempo em que uma jovem interiorana, tímida e ingênua, enfrentaria as armadilhas da cidade com suas luzes e mistérios. Tempo de juventude e de destemor, de angústias e aprendizados, mas, sobretudo, de buscas. A Hera viajou na bagagem, no início dos anos 80, rumo a Paris, cidade sempre pintada com as cores do arco-íris, cores de sonho e fantasia. Aqui, era tempo de ditadura e, muitas vezes, as vontades de dizer e de querer eram sufocadas; na França, Miterrand assumia o poder sob o signo da rosa vermelha. L’important c’est la rose….

Havia o desejo de voar alto, de ajudar a construir um mundo novo e justo, pleno de liberdade. As canções que escondiam mensagens nas entrelinhas, os Josés de Drummond, os Severinos de Melo Neto e os caracóis dos cabelos de Caetano ajudavam a alimentar as utopias. Os versos de Vinícius enchiam corações de amor e os outros poetas, consagrados ou não, brotavam do papel e saiam das bocas para traduzir a vida. E a Hera fazia parte do cotidiano dessa geração por traduzir sentimentos próximos da realidade. Os poetas da Hera eram visíveis, andavam pelas ruas, davam aulas, jogavam bola, trabalhavam em bancos, arquitetavam casas, faziam arte com palavras e pincéis e faziam parte da cidade; eles cantavam os anseios de uma geração através de palavras doces, às vezes brutas, às vezes afiadas como navalhas. A Hera cabia no bolso e no coração.

Os anos passaram e um dia – quase vinte anos depois – a Hera voltou ao seu lugar de origem – a Bahia – numa nova bagagem. Era tempo de recomeço, tempo de construção, tempo de assentar a poeira e fincar raízes na Terra. Os objetos, os livros, saíam das caixas para preencher novos espaços. Entre eles, a Hera n° 10 com a sua capa azul e branca amarrotada pelo tempo; entre as páginas, anotações feitas a lápis e uma data: “Paris, tarde de domingo, 1983”; e a tradução de dois poemas de Roberval Pereyr.

O tempo havia esmaecido as lembranças e a (re)leitura dos poemas trouxe de volta uma sala, uma poltrona, um endereço: 41, rue Brancion. Fazia frio e na rua, a cor cinzenta dos prédios emoldurados pela janela confundia-se com as nuvens escuras. Acho que era janeiro. Chumbo na paisagem, chumbo no coração daquela que olhava, triste, os galhos desfolhados das árvores da calçada, que se exibiam num movimento lento e compassado com seus galhos enegrecidos como garras de monstros.

O rádio tocava baixinho um noturno de Chopin. O som da melodia entorpecia desejos e impregnava a sala com suas notas; a tarde era triste e a minha alma era de chumbo como o dia lá fora. Os poemas que lia naquela tarde de inverno, talvez escritos numa noite de “tropical melancolia”, tinham o poder de traduzir-me, de revelar-me como imagem refletida em água cristalina. Era o encontro entre a professorinha interiorana de alma escancarada e a cidadã cosmopolita, com seus medos e angústias. Era a constatação de que a cidade dos sonhos – Paris – nem sempre era sinônimo de paraíso, como todos acreditavam. Os versos do poeta foram transportados para a língua de Voltaire:

Canção

“Habito a mansão dos tristes, dos inconciliáveis”

T. S. Rausto

 

 “Não tenho muitas vontades:

contemplo a brisa;

às vezes me dói (à tarde) a vida).

 

São poucos meus companheiros,

eles estão perdidos –

e eu perdido com eles. Comigo.

 

São poucos e nunca os tive

nem os conheci –

apenas nos reunimos: para existir.”

 

Chanson

“J’habite la demeure des tristes, des inconciliables”

              T. S. Rausto

Je n’ai pas beaucoup d’envies :

je contemple la brise ;

parfois elle me fait du mal (l’après-midi) la vie.

 

Mes compagnons ne sont pas nombreux,

ils sont perdus –

et moi, perdu avec eux. Avec moi.

 

Ils sont peu nombreux et jamais je ne les ai eu

je ne les ai même pas connus –

à peine nous nous rassemblons : pour exister.

 Foto: Leni David (1999)

A mão perversa da solidão apertava a garganta, calava a voz. A cidade estava ali, oferecida, com seus brilhos de lantejoulas. Mas a consciência e a impotência grotesca empurravam para o refúgio melancólico do apartamento, onde havia ausências: um mausoléu encravado no estômago da urbe. E os companheiros, onde estavam? Refestelavam-se ao sol? Os poucos companheiros talvez não estivessem como eu, perdida em mim mesma.

Naquele tempo, Canção revelou verdades a um ser ingênuo, compadecido de si, vítima do vazio. O segundo poema, no entanto, revelou dúvidas, talvez nunca antes decifradas:

 

Rigor 3

Sou infeliz e quero conhecer-me:

quero saber quem sou por estes dias

tão cheios de terror, quero saber-me.

 

Quero morrer de novo e renascer-me

e quero estar transido de agonias

e conhecer-me, quero conhecer-me.

 

este é o meu grito e, nele, quero ver-me

e comover-me em cantos, calmarias:

hei de saber-me, ah, hei de saber-me.

 

 

      Rigueur 3

Je suis malheureux et je veux me connaître :

je veux savoir qui je suis dans ces jours

si pleins de terreur, je veux me connaître.

 

Je veux mourir à nouveau et renaître

et je veux être transi d’agonies

et me connaître, je veux me connaître.

 

Ceci est mon cri et, en lui, je veux me voir

et je veux m’émouvoir dans les chants, dans les accalmies :

il faut que je me sache, ah ,  il faut que je me connaisse.

 

A criatura daquele instante iniciou sua caminhada naquela tarde de chumbo, como se morresse ao entardecer e renascesse a cada manhã; os versos do poeta se tornaram seus; os dias de chumbo perderam a sua força e o brilho da cidade não incomodava mais. A coragem reforçou-se fermentada pelo medo. O tempo passou…

Nesse instante entrego de volta, Poeta,  – agradecida, os seus versos que roubei um dia e que ajudaram a afrontar verdades; a trilhar os caminhos da cidade, a contemplar a luz sem ofuscar os olhos, malgré tout. Paris, com suas cores, luzes e mistérios, deixou marcas indeléveis na memória e uma profunda saudade.

       Feira de Santana, Bahia; março de 2005.

Obs. Os poemas Rigor 3 e Canção são da autoria do poeta Roberval Pereyr e foram extraídos da Revista Hera, n° 10, Edições Cordel, 1978, p. 35.

O poeta baiano Roberval Pereyr (1953-) é co-fundador da revista Hera, junto com o poeta Antonio Brasileiro; Roberval é doutor pela UNICAMP e professor de Teoria Literária na Universidade Estadual de Feira de Santana – UEFS, Bahia. Além de participar em diversas antologias, Roberval publicou vários livros, entre eles: As roupas do nu (1981); Ocidentais (1987); O Súbito Cenário (1996); Concerto de Ilhas (1997); Saguão de Mitos (1998); Pequenos Assombros e A unidade Primordial da Lírica Moderna (2000). Acordes (2010). Amálgama – Nas Praias do Avesso e poesia Anterior (2004).

Em sua obra o poeta nomear e avaliar os sentidos do seu percurso e da saga humana, através da linguagem e dos gestos, como se alertando a si mesmo e ao leitor de que tudo resulta da experiência e da cultura.

Observação. A crônica “Hera era uma vez, em Paris” foi publicada originalmente na Tribuna Cultural, Ano III, n° 144, em 03 de julho de 2005, quando se comemorava o Ano França – Brasil.

Foto: Leni David

 

Historinha

 

Fiquei sem sono e decidi ligar o computador. Lembrei de uma historinha que meu avô contava – quando eu era criança – e resolvi escrevê-la. Era mais ou menos assim:

 Leni David

“Em uma rua qualquer de uma cidadezinha sem importância, morava um marceneiro. Ele cuidava bem das suas ferramentas e não gostava de emprestá-las. Ele as amolava, polia, desempenava, lubrificava e as guardava num painel que ficava pendurado à parede. Gostava tanto das suas ferramentas que até lhes dava nomes. O martelo era chamado de toc-toc, o alicate, de puxa-puxa, o serrote de vai-vem, e assim sucessivamente.

Na mesma rua morava um homem que gostava de pedir emprestado as ferramentas do marceneiro e este, mesmo a contragosto as emprestava. Certa vez ele emprestou o toc-toc e este não voltou. Desaparecera…

Algum tempo depois, o filho do homem que gostava de emprestar ferramentas entrou na marcenaria e anunciou:

– Seu Fulano, meu pai mandou pedir o seu vai-vem emprestado.

Ainda ressabiado com o desaparecimento do martelo, o marceneiro respondeu:

– Menino, vai e diz ao teu pai, que se vai-vem fosse e viesse, vai-vem iria. Mas como vai-vem vai e não vem, vai-vem não vai.”

 

Se o menino soube dar o recado ao pai, eu não sei, e o meu avô não comentou. Lembro  que eu sorria muito e que tentava repetir a frase do marceneiro, sem errar. Deu certo, pois hoje fui capaz de escrever a historinha sem nenhuma dificuldade.

– Se eu a acho engraçada?

– Sei lá! Sei apenas que gostava de ouvi-la e que fui capaz de reproduzi-la. E como fazem os internautas: rsrsrsrs… só isso.

 

As novenas da Igreja dos Remédios

 As cantoras do coro

 Leni David

Eu devia ter uns doze anos quando comecei a participar do coro da igreja dos Remédios, junto com outras meninas, vizinhas da mesma rua. Ajudávamos a cantar as trezenas de Santo Antônio, que aconteciam de primeiro a treze de junho, e as novenas de Nossa Senhora do Rosário, no mês de outubro. Participar do coro da Igreja era um privilégio, segundo as cantoras oficiais, que recebiam, inclusive, um pagamento simbólico concedido pelo Padre Aderbal. As cantoras, elas nos permitiam subir até o coro para responder a ladainha que era entoada durante as celebrações, mas não podíamos conversar, sorrir, ou tocar em qualquer objeto que estivesse exposto. Não nos importávamos com isso. O importante era responder o ora pronobis na hora certa e com a voz bem afinada.

Dona Yolanda, esposa de um médico conceituado da cidade, cantava, mas a sua principal função era tocar o órgão. Como eu achava bonito aquele som! Dona Meranta e Dona Pombina as catequistas – elas ensinaram o catecismo à maioria das meninas da cidade daquela época, mas nas novenas elas se transformavam em cantoras. Dona Tita morava na nossa rua, era viúva e tinha uma voz forte e límpida, bonita. Havia outras cantoras, mas não me lembro dos nomes. A chefe, porém, era Dona Catarina, também zeladora da igreja. Ela decidia tudo: os hinos que deveriam ser entoados, se a ladainha seria em latim ou português e a que momento deveríamos entrar na cantoria. Não reclamávamos de nada e ainda ficávamos contentes quando cada uma de nós recebia duas balas de mel, uma no início “para adoçar”.a garganta, e a outra no final, como brinde.

Participávamos do coro há mais de dois anos. Assistíamos às celebrações do alto, sem ninguém à nossa frente e ainda nos divertíamos. Amávamos quando o Padre Aderbal, que era um pouco gordinho, careca e que tinha dois lindos olhos azuis, levanta os olhos e as mãos para os céus. Isso acontecia quando os sinos repicavam e o turíbulo espalhava o aroma do incenso. Ajoelhado, olhos e mãos voltados para o alto, em atitude de adoração, tínhamos a impressão de que ele iria voar. Nos controlávamos e sorríamos baixinho, de modo que ninguém percebia.

Certa vez combinamos de chegar à igreja bem cedo. Chegamos bem antes das sete. Pedimos a chave do coro ao sacristão, que também era o sineiro. Para ensaiar – explicamos. E ele, sem nenhuma atitude hostil atendeu à nossa solicitação. Subiu para tocar a primeira chamada da novena. Subimos a escada que levava ao coro. As pessoas já começavam a chegar à igreja. Ensaiávamos a ladainha quando Dona Yolanda chegou. Iara, que havia ficado como porteira, deixou que ela entrasse e ao vê-la chegar no alto da escada trancou a porta, por dentro. A primeira chamada da novena já havia sido feita, mas faltava a segunda e o sacristão não estava do lado de dentro. Iara não hesitou. Subiu os degraus que levavam à torre, de dois em dois, e tocou o sino como nunca mais ouvi tocar em toda a minha vida, durante uns cinco minutos. Festivo, barulhento, emocionante! Isso foi bom porque, nesse ínterim, as cantoras haviam chegado e batiam na porta do coro, em desesperadas, pois a novena começaria às 19h. Dona Yolanda, também, entrou em desespero:

– Quem trancou a porta? O que vocês fizeram? Abram a porta, já!

Iara que já havia repicado o sino e encoberto o barulho feito pelas cantoras, apareceu com a cara mais inocente do mundo e explicou que havia perdido a chave enquanto tocava a segunda chamada da novena. Dona Yolanda nos olhou com ar severo e resmungou:

– Quem vai cantar?

E nós, em coro, respondemos:

– Nós!

Ela sentou-se resignada diante do órgão e as notas musicais preencheram o templo. Geraldina, filha de Dona Tita e a mais velha do grupo – tinha uns quatorze anos – com o livreto da ladainha nas mãos instalou-se junto ao órgão. Dona Yolanda olhou incrédula e deu os primeiros acordes. A voz de Geraldina ecoou límpida e melodiosa e todos se voltaram para o coro, até o Padre. E o melhor é que ela cantava em latim – e o nosso coro respondia o ora pronobis na maior afinação e felicidade. Até Dona Yolanda se entusiasmou.

Entoamos outros cânticos e no encerramento da celebração eu deveria cantar o hino de Nossa Senhora do Rosário. Até hoje tenho orgulho disso! Como tudo correra bem até ali, Dona Yolanda quis saber quem iria cantar no encerramento e eu me apresentei. Ela ainda ponderou:

– Mas esse hino é muito difícil. Tem certeza que quer cantar esse mesmo?

Eu respondi que sim e ela deu os primeiros acordes. Enchi os pulmões e soltei a voz:

Volvei oh Maria o vosso olhar

Lá do vosso santuário

Atendei nossos rogos nossas preces

Oh Virgem senhora do Rosário…

 

Juro que foi lindo, tão bonito que fiquei emocionada. Quando terminou estava com os olhos marejados de lágrimas. A maior surpresa, no entanto, foi a atitude de Padre Aderbal. Antes de tirar os paramentos, dirigiu-se aos fiéis e pediu uma salva de palmas “para as jovens cantoras do coro, que haviam embelezado com as suas vozes juvenis a festa de Nossa Senhora”. Todos aplaudiram.

Foi aí que nos lembramos da chave. Onde estava a chave da porta do coro? Preocupadas pensávamos em subir até a torre para procurá-la quando Iara, com a cara mais inocente do mundo confessou:

– A chave está aqui. E puxou o elástico da manga bufante do seu vestido rosa. E justificou: se eu entregasse a chave, Dona Yolanda abriria a porta para as cantoras e nós não queríamos que elas entrassem. Elas não nos deixariam cantar.

Descemos a escadaria que conduzia ao térreo, silenciosas. Quando a porta se abriu Dona Catarina decretou: – Hoje não tem bala nenhuma. Acabou! E não voltem aqui nunca mais, ouviram? Vocês estão proibidas de subir ao coro!

Fomos embora, felizes. Fomos crianças felizes. Pena que não virei cantora…

Foto: Leni David

Irma Rosa – Pura Poesia

 

Numa manhã de maio de 2006 depois de ministrar três horas de aula entrei na sala dos professores para tomar um cafezinho e descansar alguns instantes. Sentados à mesa estavam Roberval Pereyr e Irma Caribé, ele colega da faculdade, ela pessoa muito amiga da família. Ao sentar-me fui surpreendida pela proposta de Roberval:

– Leni, Irma vai lançar um novo livro de poemas; você poderia fazer a apresentação…

Fiquei encabulada, pois não me sentia preparada para escrever a apresentação de um livro. Argumentei e até sugeri nomes de outras pessoas que poderiam cumprir a tarefa com propriedade. Não adiantou. Levei uma cópia do livro para casa e à noite, após a leitura de alguns poemas, escrevi a apresentação motivada apenas pelo conteúdo do que li, impregnada que fiquei daquela poesia viva, dura e terna ao mesmo tempo:

Apresentação

Como falar de poesia sem pedir conselho a um mestre? Em A rosa do povo Drummond advertia sabiamente: não se deve adular o poema; deve-se chegar bem perto, contemplar as palavras, consciente de que cada uma delas tem mil faces secretas sob a face neutra.

Mas onde encontrar a chave que nos conduz ao universo das formas poéticas? O segredo desvendou-se à luz de Noite Clara,de Irmã Caribe Amorim e conduziu-me por caminhos impregnados de fragmentos de vida, flagrantes de sonhos, dores…

Irma é Poeta, artista da palavra. Sua poesia, nua, explode permeada de nuanças,

revela-se em versos fortes:

E no silêncio injusto da aldeia, ruíram todos os erros. Todos.

Ou em versos ternos, plenos de lirismo, como em Crepúsculo:

O vento esfriava meu rosto. / Nada se ouvia além do mar / batendo contra si mesmo.

Ou simplesmente em versos breves como um gesto:

No inverno do ocaso / me pressinto.

Sua escrita tem força, flui como fonte cristalina, mas também machuca, devagar,como pedregulhos na areia. Vale a pena penetrar em Noite Clara para percorrer veredas enluaradas ou floridas; sótãos abandonados ou recantos perdidos, de mãos dadas com a poesia, sem compromisso com as convenções.

                                                                    (Leni David)

Para que possamos voar, esparramar beleza e ternura por aí, em Noites Claras, ou em dias ensolarados.

RICTUS II

Nada mudaria.

queria apenas viver

o outro lado da lua

e as coisas simples

do dia-a-dia

        (Noites Claras, p.15)

 POEMA TÁCITO

Chorei as dores do pássaro errante.

Ferida tombei.

Entre medo e heresias

brinquei com deuses.

e me afoguei no aconchego

De noites frias.

                    (Noites Claras, p. 18) 

ALEGORIA

 Viajavam os ventos

                     ao infinito

Somente um barco

        vagava

na tarde fria

de saudades rendilhadas

o sol em lágrimas últimas

beijou da noite

a face enluarada,

               (Noite Clara, p.25)

RUPTURA

…e rasgando a ventania

(leveza e fúria)

nada mais é preciso mulher

que arriar as velas

ocupar a gávea

soltar os cabelos

suspirar profundo

olhar ao longe

nada dizer…

permitir apenas

que seus olhos digam…

            (Um solto no outro, p. 70)

 

Irma Rosa de Lima Caribé Amorim – Nasceu em Feira de Santana, cidade onde vive. Odontóloga e educadora, Irma dirigiu o Centro de Cultura Amélio Amorim e atualmente é vice-presidente da Academia de Letras e Artes de Feira de Santana e membro da Academia de Cultura da Bahia. Publicou Um solto no outro (2003), em parceria com os poetas Cardan Dantas e Paulo Pedro Pepeu. Em 2005 publicou Noite Clara e em 2006, Avenida Senhor dos Passos. Tem poemas publicados nas revistas Hera e Arquitextos. Irma Rosa vive o dia-a-dia da cultura baiana.

Problema de troco

 

                              Leni David

Seo João era conhecido como “mão de onça” na cidade em que vivia. Era um senhor alto, pele clara, olhos acinzentados, cabelos cortados curtos, voz de trovão. Não sei se tinha esse apelido porque tinha as mãos grandes, ou se tinha algo a ver com sovinice. Só sei que ninguém ousava chamá-lo assim. E apesar da sua fama de briguento, Seo João era muito querido.

Havia um café na praça principal, onde os fazendeiros da região se reuniam para conversar e negociar, sobretudo pela manhã. Em frente ao café havia uma banca de jornais e Seo João pegava o seu exemplar, todos os dias, antes de ir para casa almoçar. Dobrava-o ao meio, enfiava debaixo do braço, ajeitava o chapéu no alto da cabeça e entrava na sua Rural Willys.

A mania de substituir o troco por bombons começou a ser disseminada, mesmo nas pequenas cidades do interior e o dono da banca de jornais adotou-a. No primeiro dia em que Seo João recebeu aquele troco inusitado, perguntou quanto valia aquilo e o vendedor informou que era equivalente a vinte centavos (de cruzeiro) o que, finalmente, não valia muita coisa.

O tempo passava, Seo João comprava o jornal e colocava as balinhas que recebia como troco no bolso do paletó. Em casa depositava-as num recipiente sobre a escrivaninha e avisava aos familiares que não tocassem nos bombons, pois precisaria deles.

Um dia ele chegou à banca de jornais e perguntou:

– Quanto é o jornal, Seo Pelé?

E o vendedor, apesar de surpreso, respondeu solícito:

– Dois cruzeiros e oitenta centavos, Seo João!

Ele enfiou a mão no bolso, retirou um punhado de balas, que depositou sobre as revistas, e pediu ao vendedor:

– Confira aí, Seo Pelé; veja se o valor está correto.

O  vendedor arregalou os olhos, espantado, e, sem entender o que se passava, questionou:

– Mas o que é isso, Seo João, pra que eu quero esses bombons?

– Ora, Seo Pelé, durante todo esse tempo o senhor me deu essas balinhas como troco. Já que elas valem dinheiro, guardei-as para pagar o jornal. Algum problema?

Seo Pelé coçou a cabeça, em silêncio, e recebeu os bombons.

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Agora respondam: Seu João era sovina, ou sabia valorizar o seu dinheiro?